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Atlas: Índia

Histórias de uma viagem de trem pela Índia

Ligue um cronômetro. A cada meia hora, uma pessoa morre dentro do sistema de transporte ferroviário da Índia. O número de mortes – definido pelas autoridades como “massacre” e “vergonha” – é só uma das características de um dos transportes públicos mais complexos do mundo. As linhas de trem cobrem uma distância de 65 mil quilômetros. Uma população inteira da Terra usa os trens da Índia: são 7 bilhões de passageiros por ano.

Entre 2011 e 2012, eu fiz parte desses números. Durante os seis meses que passei no país, os trens foram meu principal meio de transporte para longas distâncias. Foram viagens de várias durações – a mais curta de uma hora, mas também algumas intermináveis, como as 26 horas que passei dentro de um trem, entre Hyderabad e Nova Delhi. Também testei, algumas vezes contra minha vontade, três tipos de bilhete: viajei na 2AC e 3AC (AC = ar condicionado) – ambas bastante confortáveis – e na Sleeper, em que os vagões andam sempre acima da lotação e não há controle de quem entra e sai do trem. E foram estas viagens que deixaram mais histórias para contar.

Veja também: Como viajar de trem pela Índia

Viagem de trem Índia

Foto: GKarunakar, Wikimedia Commons

Sustos

Acordei no meio da madrugada, na viagem entre Varanasi e Calcutá, com 12 horas de duração. Do chão, uma mulher olhava para mim e falava alguma coisa em hindi.  Eu não entendia o que estava acontecendo. Até que vi o copo de plástico que ela segurava. Ela quer dinheiro, pensei. Voltei a dormir: não era a primeira – e nem seria a última – pedinte naquela mesma viagem.

Na classe sleeper,  acontece às vezes de dezenas de pessoas entrarem nos trens a cada estação. Algumas seguem viagem, mesmo sem ticket, procurando um lugar vazio ou dividindo espaço no banco de outro passageiro. Outras entram só para pedir dinheiro, como aquela mulher. Mas os mais barulhentos são os vendedores.

Olho para o relógio do celular. 3 da manhã. Dessa vez quem me acordou foi um homem, que passou rapidamente pela vagão entoando  um mantra conhecido.

“Chai, Chai, Garam Chai!”

O Garam Chai nada mais é do que chá quente. Quer dizer, o chá à moda indiana, na minha opinião bem melhor que o nosso. Nem por isso fui um consumidor do chai da madrugada – me limitava a torcer para o vendedor ir embora e o trem andar. Só assim eu poderia voltar a dormir.

viagem de trem pela Índia

Trem no Himalaia indiano (Foto: Raghavan V, Wikimedia Commons)

Riscos

Com tanta gente invadindo os trens a cada estação, é claro que há risco para os passageiros. O maior deles é ficar sem a bagagem. Não há dados sobre o assunto, mas o roubo de malas – principalmente na classe sleeper – é tão comum que policiais e guias de turismo orientam os passageiros a acorrentarem as malas à cama.  Na falta de uma corrente, a saída era amarrar as mochilas umas às outras e também ao pé da cama. Tudo que eu tinha de valor, como computador, máquina fotográfica e celular, ficava sempre ao meu lado, na cama. Algumas vezes eu usava a mochila menor, com esses itens dentro, de travesseiro.

Foi na viagem entre Mahoba e Varanasi, um trecho muito turístico e, por isso mesmo, com maior risco de malas roubadas. Viajávamos de 3AC, que costuma ter um controle razoável de quem entra e sai do trem. O sol ainda não havia nascido quando o policial me acordou.

Suas malas estão todas aí?, ele perguntou.

Entrei em pânico. Pulei da cama e procurei pela bagagem. Sim, tudo continuava lá, tão amarrado que eu mesmo demoraria uns 10 minutos para conseguir soltar as malas.

“Então assine aqui, dizendo que não houve roubo”, disse o policial.

Era só uma operação de rotina, uma forma de provar que nenhum incidente havia acontecido, pelo menos não durante a ronda dele. Assinei, mas o susto não me deixou voltar a dormir.

Trem lotado na Índia

E aquele não foi o único. Em outra viagem noturna pelo norte do país, acordei assustado. Alguém havia entrado em nosso compartimento. No escuro, procurei pelas malas no chão do vagão. Estavam todas lá. E a mochila menor, com os eletrônicos, cadê? Sim, aquela que passava a noite ao meu lado, na cama do trem. Revirei os lençóis. Procurei por todos os lados. Ela tinha desaparecido.

“Naty, roubaram a mochila com meu computador”, eu disse, quase gritando.

Annn?, ela respondeu sem entender, ainda dormindo.

Repeti. Não adiantou.

Resolvi procurar pelo ladrão dentro do trem. Corri pelo vagão, olhando em todos os compartimentos, mas os outros passageiros dormiam calmamente. Voltei pra minha cama e, advinha só, minha mochila estava lá, provavelmente no mesmo lugar em que eu a tinha deixado no dia anterior. O sono (e o medo) tinham me enganado.

“Naty, fica calma, nada foi roubado”.

“Annn?”

Trem indiano

Cama da 2AC

Familia indiana em um trem

Cama da classe sleeper

O ambiente

As estações são cheias e quase sempre sujas. Nas mais lotadas, centenas de indianos se aglomeram no chão, enquanto aguardam o próximo trem. Apesar da proibição, dezenas de pessoas cruzam as linhas do trem o tempo todo, para trocar de plataforma – as passarelas são ignoradas. Homens, crianças e famílias inteiras preferem atravessar assim, apesar do perigo, que é real.

Das 17 mil pessoas que morrem todos os anos no sistema ferroviário da Índia, 16 mil perdem a vida enquanto atravessam linhas de trem – 6 mil morrem só em Mumbai, que é cortada de norte a sul por trens urbanos. Na metrópole, centenas caem, todos os anos, de vagões lotados, que circulam com as portas abertas, como mostra o vídeo abaixo.

E ainda há o risco de acidentes. Só em 2013 foram sete, o pior deles envolvendo um incêndio nas classes mais luxuosas e que deixou 24 vítimas fatais. Ainda assim, viajar de trem é muito mais seguro do que de ônibus. Menos para os elefantes.

Estação de trem na Índia

Estação de trem em Calcutá

A Índia tem uma população de 26 mil elefantes selvagens. Não é incomum que alguns desses animais sejam atropelados por trens de alta velocidade. Em novembro do ano passado, um trem cruzou com uma manada de 40 elefantes. Sete animais morreram e mais uma dezena saiu gravemente ferida do encontro.

Segundo o New York Times, ambientalistas sugerem que a velocidade dos trens seja reduzida para 40 km/h nas regiões habitadas pelos animais. E isso só entre 4h e 5h, quando é mais provável que os bichos se movimentem. Mesmo assim, a Indian Railway se recusa a adotar a redução, com a justificativa de que isso atrasaria o desenvolvimento do país. O irônico? Os elefantes são sagrados na Índia, patrimônio cultural declarado do país. E o mascote da India Railway é justamente um elefante, o simpático Bholu.

Mascote da Indian Railways

Para ver essa triste realidade, clique aqui. Mas saiba que as imagens são fortes.

Um país cortado por trens

A Índia tem a quarta maior malha ferroviária do mundo: apenas Estados Unidos, China e Rússia tem um transporte sobre trilhos mais abrangente. O sistema indiano foi criado pelos britânicos, que colonizaram a maior parte do subcontinente, e nacionalizado após a independência do país, em 1947.

A Indian Railways, empresa estatal, controla 10 mil trens, 7500 estações e 1.4 milhão de funcionários – a estatal é a nona maior empregadora do mundo. No ano passado, a empresa recebeu 19 bilhões de dólares pelo serviço.  Apesar da grande quantidade de dinheiro envolvida, o transporte tem falhas. Atrasos são comuns, acidentes não são raros e muitos dos trens são lentos e sujos. Muito sujos.

mapa de transporte ferroviario da Índia

Mesmo assim, não existe forma melhor de viajar pela Índia. Muitos viajantes – eu entre eles – sonham em fazer percursos famosos, como a Transiberiana. Só que andar de trem na Índia também é uma aventura, talvez até maior do que a oferecida pelo transporte russo.

Pela janela do trem, vi passar cenários incríveis. Montanhas, campos, florestas, templos, cidades, praias… Entre as belezas testemunhadas pelos passageiros estão também dois Patrimônios Mundiais da Humanidade que pertencem à Indian Railway: a  Chatrapati Shivaji Terminus, estação central de Mumbai, e a rota cênica pelas montanhas do Himalaia.

Victoria Terminus - Mumbai

Estação Chatrapati Shivaji Terminus, em Mumbai

Por outro lado, muitas vezes é melhor não olhar pela janela do trem. Sujeira e poluição são tão comuns quanto as paisagens bonitas e não é raro presenciar homens que fazem necessidades – a número 1 e a número 2 – próximo aos trilhos. Segundo a Unicef, seis em cada 10 indianos não têm banheiro em casa. Para 600 milhões de pessoas, fazer as necessidades no meio rua pode ser uma realidade diária.

Não há país mais variado no mundo do que a Índia. Nenhum tem tantos idiomas, tantas religiões, tantos costumes, tantos povos. É quase um milagre que a Índia seja um país só, e não um punhado de nações menores, tantas são as diferenças e forças que lutam pelo separatismo. Andar de trem pela Índia significa ver da janelinha todas essas diferenças, para o bem e para o mal. Significa conversar com uma família de indianos que vai, pela primeira vez na vida, para a Varanasi, cidade sagrada para os hindus. Significa lutar por seu espaço nas classes mais inferiores. Ou então viajar como um marajá, em um dos vagões mais luxuosos do planeta. Dentro de um trem, amamos e odiamos a Índia ao mesmo tempo.

Seguro

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*Imagem destacada: Tracy Hunter, Wikimedia Commons

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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18 comentários sobre o texto “Histórias de uma viagem de trem pela Índia

  1. Em 2013 tive a oportunidade de passar um mês na Índia. Viajei de trem de Alahabad até Calcutá numa cabine sleeper. Foi uma experiência sem igual. A Índia é mesmo incredible!

  2. Rafael, acompanho o blog faz um tempo e aodoro vocês!
    Nem acredito no que acabei de ler. Viajar de trem pela Índia é o meu sonho e estou me planejando para realizá-lo em breve. Parabéns!!!

    Aproveito para indicar o livro “Expresso para Índia” de Airton Ortiz.
    Imagino que conhece o autor mas, se não, recomendo!!

    Abraço

  3. Maravilhoso o texto, a riqueza de detalhes, a cultura que ele agrega. Um verdadeiro fomento ao desejo intenso de quem aprecia viajar. Parabéns pelo texto e muito obrigada por dividir essa experiência enriquecedora.

  4. Show!!! A índia é um país surpreendente, ainda não tive oportunidade de ir, mas venho juntando uma grana e pretendo ir ano que vem, ficar pelo menos uns 6 meses e a cada dia que tenho mais informações sobre a índia, não vejo a hora de estar lá. Você poderia me dar uma informação sobre o custo de uma semana na índia?

  5. Eu tenho uma dúvida sobre uma viagem que tem de 7 dias. Você sabe disso? É algo para turista? Ou compro um passe de 7 dias da Indian Railway? Sabe de alguma coisa a respeito? No caso desses trens com o passe eu poderia descer em uma estação, passar 2 dias em uma cidade e depois pegar o trem de novo e seguir fazendo a mesma coisa pelo período de 7 dias, certo?

    Obrigado!

  6. Fala, Rafael!

    Fui pra lá em 2013 e o blog de vocês ajudou muito! Obrigado!
    Fico lendo esses posts e relembrando de várias situações. Cheguei presenciar um cidadão tentando se suicidar nos trilhos de Haridwar… só bizarrice.

    Uma dica boa que não encontrei no site é sobre comprar passagens dias antes. Fiz isso em Delhi, naquela zona para turistas, e até que consegui comprar direitinho. Acho uma boa jogar aí. 😉

    Valeu! Abração.

  7. Parabéns pelo site, muito bom mesmo,.
    Fiquei Curiosa para saber com que tipo de material voces amarravam as malas no trem ?
    E mesmo amarrando existe o perigo delas serem roubadas?

    1. Oi, Tereza. Obrigado!

      A gente viajava com mochilas, então era fácil amarrar as mochilas umas às outras com as próprias alças e travas de segurança delas. Outras pessoas, no entanto, usam correntes ou cordas.

      Acho que desse jeito as chances de roubo diminuem muito, afinal o ladrão vai tentar tirar a mala do lugar e, ao não conseguir, provavelmente vai procurar uma mais fácil.

      Abraço.

  8. As paisagens são ótimas, deve ser uma viagem incrível de se fazer apesar dos perrengues citados haha! Cara, que video é esse? Coitados dos elefantes.

    1. É uma viagem incrível, Gabriel! Apesar dos perrengues. hehehe

      Só não vale pegar o trem pelo lado de fora, no estilo que mostra o vídeo. Aí o perigo é real mesmo.

      Abraço.

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