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Preconceito religioso no Brasil: intolerância x diversidade

Aos onze anos e vestida com as roupas de sua religião, Kaylane Campos tinha acabado de deixar uma festa de candomblé na Vila da Penha, no Rio de Janeiro, quando foi apedrejada na cabeça. Com sangue escorrendo pelo corpo e ainda sem entender o que tinha acontecido, a menina logo foi socorrida por familiares e amigos. Os agressores, que, segundo testemunhas, estavam com Bíblias na mão, não agiram nas sombras. E antes da pedra veio o grito: “você vai queimar no inferno, diabo”, disseram os apedrejadores, que também fizeram questão de afirmar que “Jesus está voltando”.

Isso aconteceu em junho de 2016. E não é um caso isolado. O Disque 100, também chamado de “Disque Direitos Humanos” e ligado ao governo federal, passou a receber denúncias de preconceito religioso em 2011. Desde então, os números não param de subir – foi registrado um aumento de 3706% nos últimos cinco anos. E para especialistas ainda ocorre uma subnotificação dos casos. Outra pesquisa, essa da PUC-Rio, ouviu líderes de 847 terreiros e coletou 430 casos de preconceito religioso, mas apenas 160 desses (37%) tinham sido notificados aos órgãos competentes.

A maioria das agressões – cerca de 70%, segundo a mesma pesquisa da PUC – são verbais, como as que Kaylane ouviu antes e depois de levar a pedrada. Mas agressões, ataques a símbolos religiosos e invasões de templos e locais sagrados não são incomuns. Em 2015, vários terreiros de candomblé foram invadidos e incendiados em Goiás. E no mesmo ano, no Rio de Janeiro, um homem invadiu um terreiro de umbanda e quebrou imagens e outros objetos sagrados.

Os exemplos são vários e a semelhança não é casual. Segundo dados da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR), mais de 70% dos casos de intolerância religiosa no estado são contra praticantes de religiões de origem africana. Para pesquisadores, há duas razões parar explicar o fato. Uma delas é histórica, já que o racismo e o preconceito começaram no período colonial, com a escravidão. O que ocorre é que essas religiões, simplesmente por serem de origem africana e negra, viram alvo da discriminação.

religiões de origem africana

Além disso, a ação de grupos cristãos que tentam demonizar as práticas e a fé de origem africana acaba causando mais atos de intolerância. É o caso de exu e da pombagira, só para citar dois exemplos. São entidades de religiões de origem africana que tiveram seus nomes apropriados e demonizados por religiões cristãs. Casos assim não são raros e se repetem ao longo da História. Quer outro exemplo? É provável que você ligue o nome Belzebu ao diabo da doutrina cristã, mas originalmente Baal Zebul era uma divindade dos filisteus e cananeus, povos que viviam na mesma região onde se originou o judaísmo e, mais tarde, o cristianismo.

O aumento da intolerância religiosa teve consequências práticas para os membros de religiões de origem africana, como a necessidade de aumentar o investimento de segurança em terreiros e templos e, claro, o medo. “A intolerância religiosa está para o Brasil assim como o racismo está para os Estados Unidos. Todo mundo acha que não existe, mas há exemplos gritantes de violência e todos lamentam, mas não fazem nada a respeito”, disse Pai Costa, dirigente umbandista do Centro Espírita Pai Benedito de Angola, em entrevista ao site da BBC Brasil.

Outro relato é o de Pai Márcio de Jangun. “Já me recusaram vender flores quando perceberam que seriam usadas em terreiro de candomblé. No transporte público, a pessoa se levanta por não querer ficar sentada do seu lado, se benze. É algo que infelizmente faz parte do cotidiano e que os praticantes de religiões africanas lidam todos os dias no Brasil”, ele contou.

religiões africanas

Outro caso conhecido de preconceito e intolerância, mas que acabou na justiça, foi contra Mãe Gilda. Ela morreu em 2000, ao sofrer uma parada cardíaca – sua casa tinha sido invadida por evangélicos, que apedrejaram a residência e ofenderam seu marido. Antes disso, a Folha Universal, jornal ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, publicou uma matéria com o título “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, usando uma foto de Mãe Gilda na reportagem. Em 2009, a Justiça condenou a Igreja Universal a indenizar os herdeiros de Mãe Gilda em R$ 145 mil.

Embora os casos contra religiões de origem africana sejam maioria, há ataques, verbais ou físicos, contra outros grupos.  Em 2013, durante um protesto, imagens sacras foram quebradas e um manifestante chegou a colocar uma camisinha na cabeça de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida; no ano passado uma pastora da Igreja Aliança com Deus quebrou, com marretadas, uma imagem da santa – o vídeo foi postado na internet. O caso lembra outro, de 1995, quando um bispo da Igreja Universal chutou, durante um programa de TV, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Isso ocorreu exatamente no dia 12 de outubro, quando católicos de todo o Brasil celebram o dia da santa.

Os evangélicos, por sua vez, são outras vítimas frequentes do preconceito religioso e da intolerância. A mesma pesquisa do CCIR mostra que, embora numa proporção muito menor do que as religiões de origem africana, esse é o segundo grupo mais atingido, com 7,7% dos casos. Em seguida estão os católicos, os judeus e os sem religião, cada um dos grupos com 3,8% dos casos reportados.

Não é preciso ir longe para achar exemplos. É provável que você tenha visto algo na sua família. Eu vi. Como muitas crianças do Brasil, eu fui batizado como católico, mas minha mãe era evangélica, da Igreja Universal, fé que minha irmã hoje professa com orgulho. Assim como ela, fui criado dentro da igreja. E da mesma forma que vi membros da IURD envolvidos com vários casos de preconceito religioso, em especial contra católicos e membros de religiões de origem africana, cansei de ver o preconceito e a intolerância no sentido contrário, inclusive dentro da minha própria família, que é majoritariamente católica.

Alguns anos mais tarde, já na adolescência e também levado por questões familiares, passei a frequentar reuniões das Testemunhas de Jeová, outro grupo cristão em que os membros sofrem e praticam preconceito diariamente. E nem preciso dizer do preconceito que sofrem os espíritas, que também não estão isentos de atos do mesmo tipo. Foi só em 2012, ao entrar numa mesquita em Kuala Lumpur, na Malásia, que me dei conta não apenas das diferenças, mas de uma semelhança entre as diferentes fés mundiais: sofrer preconceito é um ponto comum, ainda mais se o grupo em questão é minoritário.

Veja também: Você tem medo de muçulmano?

Muçulmanos

Para tentar entender melhor esse assunto – que sempre me interessou -, conversei com o Professor Maurício de Aquino, da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), que é Doutor em “História e Sociedade” e pesquisador da História das Religiões. “Esses recentes atos de violência física e simbólica indicam que existem tensões das religiões entre si e delas com as filosofias não religiosas. O Brasil não é o campeão mundial da tolerância, como quer a grande mídia. Infelizmente, ele continua a ser o campeão mundial da desigualdade social, como apontou o historiador Eric Hobsbawm em seu clássico livro intitulado Era dos Extremos”, explicou ele.

Aquino cita também o sociólogo Zygmunt Bauman, falecido em janeiro deste ano, que escreveu que a ‘mixofobia’ (aversão à diversidade) e a ‘mixofilia’ (respeito à diversidade) coexistem em nossa sociedade. “Mas, para converter preconceito social em cidadania, para transformar intolerância em respeito pela diversidade, precisamos de conhecimento, de atitudes exemplares, de efetivação de direitos, de promoção da igualdade e da justiça. E aqui um ponto fundamental: sem justiça, não há paz. Sem justiça social, não há cidadania e respeito. Implica, então, em maior investimento social (do Estado, das instituições, de cada um/uma de nós) e financeiro em educação, cultura e políticas públicas. Infelizmente, nosso tempo presente no Brasil tem se caracterizado por ações do Estado que vão na contramão dessa necessária valorização da educação, da cultura e das políticas públicas”, defende o professor.

Preconceito religioso é crime. A Lei n. 9.459, de 1997, pune crimes de “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” com penas de um a três anos de reclusão, além de multa. Mas o Professor Maurício de Aquino lembra que leis, sem reconhecimento e significado sociais, não mudam, por si mesmas, comportamentos. E mostra que o preconceito está presente em coisas que muitos considerariam pequenas, típicas do dia a dia.

“O preconceito baseado em opiniões e comportamentos religiosos, ou em filosofias de vida não religiosas, se manifesta na produção de estereótipos sobre as religiões e filosofias e sobre os seus seguidores. São criadas imagens preconceituosamente tipificadas da ‘beata católica’, do ‘carismático católico’, da ‘roupa de crente’, do ‘cabelo de crente’, do ‘padreco’, do ‘rato de sacristia’, do ‘pastor ladrão’, do ‘chuta que é macumba’, do ‘ateu imoral’, etc. Esses estereótipos se dissimulam e difundem nas piadas e conversas do dia a dia e em outras formas preconceituosas veladas e dissimuladas. Mas, também se evidenciam em atos de violência física e simbólica, em outras palavras, em atos de intolerância”, explica Aquino.

Outro aspecto essencial para uma democracia pode tornar esse assunto ainda mais complicado: é a questão da liberdade religiosa e de expressão. Como fazer quando a essência de uma religião exige acreditar que aquela seja a única verdade possível? Como não caminhar para a intolerância quando sua própria fé ensina que é necessário converter os outros, considerados infiéis ou, para usar um termo comum em muitas religiões cristãs, mundanos?

Para Aquino, mesmo com as diferenças é possível a convivência pacífica. “Mais sensato é esperar algo como o seguinte: imaginemos uma pessoa convictamente cristã, que respeita as escolhas religiosas e filosóficas de outras pessoas e que não o faz em reconhecimento da existência de outros deuses ou da plena validade de outros princípios filosóficos, porque isso desvirtuaria a sua identidade baseada na convicção de que o seu Deus tem um só nome. Mas o faz em respeito da dignidade da pessoa humana, motivada por princípios bíblico-cristãos de amor ao próximo, como amor a Deus (caridade, misericórdia), e, motivada pela cidadania – fiando-se então nas leis e princípios democráticos de seu país”, explica o professor.

E ele acrescenta que é sim possível criticar o ponto de vista ou a crença do outro sem ofender ou ridicularizar. “Criticar é um direito assegurado pelas leis, é liberdade de expressão, mas a crítica não pode se apresentar como agressão, como ofensa, como ridicularização de símbolos e doutrinas religiosas. O mesmo vale para os religiosos que têm o direito de criticar visões de mundo ateias, mas que não podem ridicularizar ou ofender os que as professam”, completa o Professor Maurício de Aquino, que termina o papo citando Voltaire: “essa tolerância nunca provocou uma guerra civil; a intolerância cobriu a terra de carnificinas”. 

*Algumas das fotos deste texto são do Shutterstock

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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27 comentários sobre o texto “Preconceito religioso no Brasil: intolerância x diversidade

  1. Respeito as religiões, discordo totalmente de agressões a quem tem uma religião diferente da cristã, certos religiosos cristãos agem com ignorância e contrários ao que pregam, onde está na Bíblia que devemos sair agredindo religiões diferentes?! Deturpam a própria Bíblia , distorcem para poderem agir na maldade assim tb acontece com o islamismo que justifica tudo de ruim que fazem para fazerem seus atentados à bomba p ex… por aí vai … Não sou religiosa , mas tb reconheço o lado ruim e bom das religiões, e tb sei que na umbanda , candomblé , etc existe o lado mal, sou vegana , adoro os animais , e sei que há uma reclamação geral sobre a prática das religiões nesse sentido de matarem e torturarem animais, protetores de animais sempre encontram em túmulos , encruzilhadas animais mortos de maneira horrível , e olha já ouvi muita desculpa esfarrapada de que no candomblé e umbanda não agem assim, mas sei tb que agem desse jeito sim ,pois eu frequentei por um tempo tais religiões e sim ,usam animais para sacrifícios , gatos , galos, etc… e se me perguntam se acho isso louvável e ter que respeitar isso ?! Digo que não , óbvio, mas nem por isso vou sair matando e agredido esses religiosos…. Mas justamente os religiosos acabam por ser os mais agressivos … vai entender esse mundo…

  2. Oi rafa gostei muito dessa matéria pois gosto muito de me manter informada.sou dona de casa e tenho religião sou cristã e tenho fé na palavra de Deus e ela nunca me ensinou a mim e a minha família a des-respeitar as pessoas e as suas crenças mesmo que não estejam de acordo com as nossas. Mesmo que suas crenças não estejam de acordo com a bíblia ainda assim a bíblia não nos ensina a maltratar as pessoas e a ofende-las. Pois ela nós ensina que temos o livre arbítrio ou o direito de escolha. Também nós ensina o significado do verdadeiro amor e isso inclui respeitar as escolha das pessoas incluindo religião,cor,sexo,amor,gosto,roupa,comida,lugares,musica,animais e tudo que nos fazem humanos. Deixamos que cada ser humano decidam o que é melhor pra cada um.infelizmente alguns são moldados por mentes maldosas o que tem muito nesse mundo e nos seres humanos temos fraquezas qua nem sempre admitimos.

  3. nossa, melhor texto que li, ótimo para ter base na hora de um ato preconceituoso e até mesmo para acrescentar conhecimento e não se deixar levar por preconceitos

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