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Hora de mudança

Um corpo estirado no chão e o caos. Esse foi o resultado de uma mudança de casa que começou em junho, mas foi encerrada somente no final de setembro. Tomar a decisão de me mudar não foi fácil e exigiu tempo – eu morava no mesmo endereço, na Rua Sapucaí, região central de Belo Horizonte, há quase dois anos. Adorava a vista da janela, que tinha BH com alguns de seus mais icônicos lugares: o Parque Municipal, a Avenida Afonso Pena, a Praça da Estação e a Serra do Curral.

Vista que tinha um custo. E nem estou falando só de dinheiro, embora fosse um valor que eu não estava dando conta de bancar já há algum tempo. É que, além disso, havia o trem. Não um trem típico do mineirês, expressão que pode significar qualquer coisa pelas bandas de cá, mas de fato uma locomotiva puxando dezenas de vagões carregados de minério de ferro. E ainda tinha o único trem de passageiros interestadual do Brasil, que liga Belo Horizonte e Vitória, no Espírito Santo. Tudo saindo da porta de casa.

Veja também: O que aprendi morando sozinho

Belo Horizonte

Vista da casa antiga

A tal vista linda só era possível porque não há outros prédios em frente ao meu antigo apartamento – só a Praça da Estação. Que tem esse nome, óbvio, por ser uma estação de trens há décadas, além de receber também o fluxo de passageiros do metrô da cidade. O resultado? Eu vivia com um céu infinito engolindo minha janela e um trem maior ainda engolindo qualquer som que saísse da minha boca.

Quando o minério tinha que passar, as janelas tremiam e ficava impossível ouvir a televisão, nem mesmo no volume máximo. Nessas horas o melhor era pausar a série e esperar por cinco minutos o mundo parar de tremer. Em Annie Hall, Woody Allen vive um personagem que passou a infância numa casa que ficava embaixo de uma montanha-russa. Tirando a vista, que o personagem não tinha, e o noivo neurótico e a noiva nervosa (péssima tradução de título, por sinal), era mais ou menos a mesma coisa.

Vista de Belo Horizonte

A Praça da Estação

Junte a tremedeira, o custo alto e a distância da minha família, que mora em outra parte da cidade, e pronto: foi assim que tomei a decisão de me mudar, mas não sem muitas dúvidas. Eu tinha me viciado na rua Sapucaí, embora não saiba dizer se a causa era a vista, os bares que existem ao redor ou a tremedeira causada pelas cervejas dos bares e pela montanha-russa, digo, pelo trem.

Deixar a primeira casa que tive como adulto, sem contar as repúblicas dos vinte e tantos anos, tinha lá seu simbolismo. Um lar é mais que um conjunto de paredes. É um móvel colocado ali, outro acolá, um montinho de poeira que se acumula num canto, as pegadas do cachorro que ficaram marcadas na parede, algo importante que aconteceu num almoço qualquer ou todos os almoços que a gente nem se lembra mais. O monte de histórias e a memória que foi construída ali. Parado sozinho naquele mesmo apartamento, já vazio e com apenas poeira, eu vi um lar chegar ao fim. Para outro começar e ter suas próprias histórias.

Se deixar uma vida para trás já é complicado, no meio do caminho tinha uma imobiliária. Várias delas. Visitei dezenas de apartamentos – de barracões a coberturas, de quitinetes a casas que tinham quartos e corredores tão grandes e escuros que eu, marmanjo feito, pensaria duas vezes em me levantar de madrugada para pegar um copo d´água. Quando, enfim, achei o apartamento que chamaria de meu, tropecei numa imobiliária que estava mais preocupada em vender seguro fiança do que em alugar imóveis.

Tá aí uma coisa que não entendo: por que é tão difícil achar um apartamento legal, juntar os mil documentos exigidos, fazer com que a imobiliária esteja disposta a analisar os documentos, implorar para a imobiliária te ligar de volta, conseguir o contrato, registrar em cartório e, enfim, fazer as malas e recomeçar a vida em outro lugar. O mundo deveria caminhar para a desburocratização, mas parece seguir a lógica do universo: as coisas são feitas com o mínimo de energia e a carga máxima de caos.

Após semanas de insistência, desisti da casa que parecia perfeita e recomecei as buscas, finalizadas na última quinta-feira, quando um blogueiro de viagem, um cão daschund chamado Whisky e um boldo chamado boldo entraram no novo apê, com uma geladeira nas costas e caixas de objetos nas mãos. Minha primeira providência foi pendurar uma rede na varanda e me deitar, rede essa que eu tinha comprado ainda no outro apartamento, mas que estava guardada há meses por falta de lugar para pendurá-la. Pensando bem, acho que foi por causa dessa rede que me mudei. Se sua casa não tem lugar para seus móveis, empacote tudo, enfrente as imobiliárias e vá viver num lugar onde isso seja possível. Custe o que custar.

Consegui organizar um pouco do caos ontem à noite e agora o banheiro já tem as coisas do banheiro, o quarto tem as coisas do quarto e a cozinha tem as coisas da cozinha, embora quase tudo ainda esteja encaixotado e os talheres demonstrem certo receio de sair para conhecer a nova casa. O escritório é, no momento, o quartinho da bagunça, que reúne todos os objetos que não faço ideia de onde colocarei. Sem problemas, por enquanto trabalho da rede, embora a internet ainda não tenha chegado por aqui – o jeito é aproveitar a rede alheia.

Essa não é minha primeira ou segunda casa. É a décima terceira. Aos trinta anos, me acostumei a ter um lugar novo para chamar de lar a cada dois anos e meio, mais ou menos. Nomadismo que veio da infância e teima em não ir embora. A novidade é o caminho de volta: me mudei para a Pampulha, região de Belo Horizonte onde cresci e que é bem diferente do centro da cidade, onde morava até ontem.

igreja_da_pampulha_belo_horizonte

A Pampulha é quase uma cidade separada dentro de BH, tanto é que os mais velhos, que vieram morar aqui nos anos 60 e 70, dizem que vão à cidade toda vez que precisam ir ao centro. Voltei a morar num bairro que há algumas décadas tinha ruas com nomes simplórios, como rua um, dois, ou três, e onde até hoje não é raro que o barulho dos carros se misture com o dos cascos dos cavalos. Aconteceu hoje.

Vou sentir falta do último lar, tenho certeza. Mas, por outro lado, se tem uma coisa que a vida me ensinou, principalmente nos últimos cinco anos, quando rodei o mundo e tive a oportunidade de viver fora do Brasil, é que todo mundo tem raízes, mesmo a mais nômade das pessoas. Para citar García Márquez, “a gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele”. Ou, como escreveu o escritor brasileiro Daniel Galera, “há apenas dois lugares possíveis para uma pessoa. A família é um deles. O outro é o mundo inteiro.”  Aqui, que é ainda mais perto do aeroporto, sinto que estou com um pé em cada lugar.

Por mais que eu esteja feliz na casa nova (e o bolso agradeça), não sei quanto tempo morarei aqui. Sequer sei até quando Belo Horizonte, a cidade que mais amo no planeta, será minha casa e tenho certeza que ainda viverei em outros cantos do globo. Por hora, me limito a começar a criar novas memórias nesse lar. Mesmo que seja passageiro.

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Eu quero

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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