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O verdadeiro medroso de avião

Vou confessar uma coisa: morro de medo de avião. Não é medinho não. É medo de respeito, daqueles que te fazem rezar antes da decolagem, durante a decolagem e depois depois dela. Não foi sempre assim, é verdade. Acho que o medo aumentou com os anos e milhas áreas – quanto menos motivos eu tenho para duvidar que aquela geringonça ficará no ar, mais eu faço isso.

Gabriel García Márquez, que dizia que voar de avião é o único medo que nós, latinos, confessamos sem vergonha e até com um certo orgulho machista, também garantia que o verdadeiro medroso de avião não é aquele que se nega a voar, mas o que aprende a voar com medo. Pelo menos isso eu aprendi bem. Nunca deixei de voar e nem fugi na hora do embarque, mas vontade eu já tive.

Como sou um medroso de avião profissional, entro na aeronave suando frio, afivelo o cinto e torço para nunca conhecer as máscaras de oxigênio. Na hora da decolagem todo deus ajuda – se necessário, peço para um panteão inteiro, do cristianismo ao hinduísmo. Tem dado certo, mas os engenheiros garantem que isso tem só um pouquinho mais a ver com ciência e trabalho duro do que com fé. Dá na mesma, afinal o que importa é chegar com segurança ao destino, mas por via das dúvidas vou incluir a ciência na hora da reza.

Em algumas ocasiões foi complicado manter o profissionalismo no medo de voar. Num voo entre Lima e São Paulo, em junho deste ano, embarcamos, rezei para todos os deuses de plantão e me preparei para a decolagem, que não ocorreu imediatamente. Ficamos uma hora parados na pista enquanto o piloto resolvia um “probleminha técnico” na aeronave.

Todo mundo rindo, feliz, fingindo que estava bem. E ignorando a presença de dois engenheiros na cabine do avião. Achei que o medo era só meu, até que vi a voz do passageiro da frente vacilar e reclamar o medo para ele também. Acompanhada pelos olhos de mais de uma centena de medrosos profissionais, uma comissária de bordo atravessou a aeronave carregando o que parecia ser o manual de instruções do avião. Enquanto ela levava até a cabine uma versão avançada de How Planes Fly for Dummies, tremi. “Se alguém pedir para sair eu vou atrás”, pensei, já satisfeito em não ser o primeiro a arregar. Ninguém saiu, levantamos voo e chegamos com segurança em São Paulo, provando que pilotos, engenheiros e deuses sabem o que estão fazendo, embora muitos duvidem dos últimos.

O jornalista Victor Gouveia, que estava nesse voo comigo, aproveitou para contar uma história. Num voo entre Brasília e São Paulo, o avião decolou, mas voltou para o solo logo depois. Os entendidos resolviam o problema e um cheiro de algo queimado enchia a aeronave quando ele resolveu pular fora do avião enquanto isso ainda não exigiria um paraquedas. Os outros passageiros se entreolharam, todo mundo pensando em fazer a mesma coisa, até que uma freira se levantou e saiu do voo, dizendo que não gastaria sua fé à toa. Todos, inclusive os ateus, vieram atrás dela.

Voar e o medo envolvido nisso são parte da minha vida, quase uma prova de bravura, afinal pego cinco ou seis voos por mês. Encontrei conforto ao saber que amigos, conhecidos e até famosos compartilham do medo de avião, digo, do respeito pelas leis da física. Uma teoria: o medo de avião é maior em gente de humanas, afinal nunca entendemos de verdade essas leis. O problema é só explicar o caso de um dos medrosos mais conhecidos, o arquiteto Oscar Niemayer. Ele voou durante a maior parte da vida, deu voltas e mais voltas no globo e encarou até três voos de Concorde, mas aos 90 resolveu que preferia a estrada. “A idade tem de trazer privilégios”, dizia ele.

Espero não chegar ao ponto do Niemayer, até porque tenho certeza que a primeira vez que você deixa de entrar num avião tem grandes chances de se tornar a última vez que você tentou entrar num avião. Basta cruzar a barreira que separa o medo irracional do pânico total para prender seus pés ao solo. E sim, eu sei muito bem que o medo é irracional e que voar é a mais segura das formas de transporte, tanto é que já escrevi um texto sobre táticas para evitar o pânico e viajar mais tranquilo. Não que eu mesmo seja capaz de usá-las, claro.

Acho que meu medo nunca ficou tão evidente quanto no dia em que eu cheguei atrasado no aeroporto e perdi um voo para Porto Alegre. Como era véspera de feriado, comprar um novo voo para POA custou o mesmo que passagens de última hora para Fernando de Noronha.

Enquanto eu parcelava a compra em dez vezes sem juros e chorava pelo cofrinho despedaçado – até hoje não terminei de pagar essa conta -, abri meu computador e recebi uma notificação que tirou o foco do dinheiro desperdiçado e levou para o problema real. O voo que eu tinha perdido já estava na segurança do solo porto-alegrense. “Que merda”, pensei, prestes a embarcar num voo de incertezas. “O  que eu perdi chegou. Mas e esse?”. Tremi, mas entrei, mantendo o direito de ser chamado de medroso profissional.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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