Eram quase cinco da manhã, aquela hora em que as baladas começam a tocar músicas melosas de despedida dos últimos bastiões da pista. Eu estava completamente bêbado e cantando “Irreplaceable” a plenos pulmões, da diva máxima Beyoncé, na companhia de desconhecidos mais ou menos no mesmo grau alcoólico.
Talvez pelas conexões cerebrais que só os breacos são capazes de produzir, a sentença “I could have another you in a minute” (“Eu poderia ter outro você em um minuto”) me incomodou. Ver aqueles meninos cantando essa música com ar de superioridade me deu um bode e fui embora a pé, pensativo. Parece que hoje todo mundo substitui com facilidade; ninguém se vê como substituível. Só que a gente não vive em uma ilha, e a lógica leva a concluir que então todo mundo substitui e é substituível na mesma medida. Que bosta.
Peraí, antes de desenvolver o raciocínio preciso defender a musa. Aqui ela está cantando sobre um relacionamento abusivo, um cara que punha ela para baixo e foi superado. Sabe o clássico “você não seria nada sem mim”? É isso que Ms. Knowles combate, empoderada que é. “Lindão”, diria, “vá de reto que eu não preciso de você pra nada, posso sobreviver muito melhor sem a sua presença vampiresca aqui”. Quando ela cantarola afinadérrima “não vá pensando nem por um segundo que você é insubstituível” significa “melhore” e não “você não tem nenhum valor”.
Diva
Não me parece ser assim que reverberou na Geração Irreplaceable, que se acha a última delação da Lava Jato. Tinha esquecido da reflexão embriagada até que li esse ótimo texto sobre ghosting — um fenômeno cada vez mais frequente em que as pessoas vão simplesmente desaparecendo da vida uma das outras sem dar muitas explicações. Liguei lé com cré, lembrei de alguns casinhos que tive, e como naquele dia da balada fui embora com o seguinte pensamento martelando: todos são únicos em suas individualidades se dermos a chance de conhecê-los.
O alemão Jacob*, por exemplo. É estilista, aprendi muito sobre moda com ele. Cada vez que saíamos trajava alguma roupa diferente que ele mesmo havia costurado. Me explicava os conceitos empregados, ampliou minha visão sobre moda. Uma vez visitamos uma exposição sobre o filme “Blow Up”, do diretor Michelangelo Antonioni, e tive uma aula sobre os figurinos apresentados. Tem mãos bonitas, apesar de calejadas, um humor rápido e uma risada estridente. Só Jacob é a reunião existencialista que o torna Jacob, e eu pude conhecer brevemente.
Assim como o ilustrador italiano Domenico* me ensinou a preparar uma verdadeira carbonara napolitana — lição útil para a vida que me remeterá a ele até quando cozinhar uma carbonara no asilo. Me levou para um tour das melhores pizzas italianas da cidade (“não chegam aos pés das originais, ãhn!”, dizia), e me desenhou dormindo com um pedaço de carbono de madrugada para presentear na manhã seguinte. Só Domenico é Domenico.
O médico húngaro Adam* me contou o motivo pelo qual seu povo parece trazer uma melancolia no olhar. Ensinou como pronunciar aquelas letrinhas esquisitas e algumas sentenças da “língua que até o diabo respeita”. Já esqueci quase todas. Com seu 1,90m de altura, caminha de um jeito desengonçado que eu reconheceria no meio de uma multidão. E aprendeu, também, a cultuar os memes da internet brasileira como se fossem deuses (ele sempre fala “Eita Giovana o forninho caiu” com um sotaque fofo e perde o fôlego de rir com o vídeo da “Senhora” fugindo).
Nenhum deles virou algo mais sério por isso ou aquilo, que não vem ao caso nem me chateiam pelos desfechos. O que importa dizer aqui é que todos são, sim, insubstituíveis. Reúnem características singulares que eu só pude conhecer por ter vencido a barreira da substituição rápida. Eles também superaram esse comportamento e conseguiram conhecer o que eu tinha para somar (pergunte a eles o que foi, não me atrevo a palpitar).
O que deixou a gente anestesiado para a troca? São as relações ilusórias das redes sociais? A volatilidade dos aplicativos de pegação? A facilidade da dispensa virtual? Sei lá, eu sou só um jornalista apontando sintomas, deixo para antropólogos, filósofos, psicólogos estudarem e nos contarem se essa é uma evolução da maneira que o homem moderno se relaciona e daqui adiante vai ser assim — e para todos, não só nós gays.
Para mudar o rumo da minha história, realizei uma última substituição. Sai Beyonça, entra Novos Baianos: “E pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto”. Tome tempo para apreciar no outro os detalhes que gostaria que vissem em você. E um brinde à insubstituibilidade (se é que essa palavra existe).
* Os nomes foram substituídos (risos) para preservar as identidades.
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Fotos: Shutterstock
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“Olhos nos olhos, quero ver o que vc faz ao sentir que sem vc eu passo bem demais”. Só lembrei dessa música durante seu texto. Também se trata de baixar a bola do outro que se achava o melho do mundo, e Chico, com maestria, o coloca no devido lugar. Divo empoderado. Ahaaha
Texto interessante, mas só uma nota de pé de página “sessão Viagens” ou “seção/secção Viagens”???
Adorei o texto 🙂 Acho que de tanto medo de rejeição se formou essa cultura do “não me importo”, né? E aí a galera vai ou fingindo que não se importa (mesmo sabendo lá no fundo que podia ter algo especial ali) ou fechando os olhos pras idiossincrasias de cada um e pra tudo que podemos compartilhar. Tava hoje mesmo falando com uma amiga sobre o tanto que aprendi mesmo com dates de uma noite só – ainda mais sendo caras como esses que vc mencionou, com culturas diferentes da minha. O que me deixa um pouco otimista é que vejo muita gente da nossa geração questionando isso, mas até mudar acho que já estaremos fazendo carbonara no asilo mesmo (talvez com um gatinho idoso ao lado, né?) :b
Acho que é um ciclo mesmo, e no meu ponto de vista já passamos do ápice para começar à descida que leva a necessários questionamentos e mudanças. Sempre tento ver as coisas de um lugar de neutralidade, que não atribui valor maniqueísta, e acho que também podemos aprender com esses novos relacionamentos. Mas talvez seja velho já para aceitar algumas coisas na maneira como eu me relaciono. Daí vem o texto, acompanhado de uma saborosa carbonara. Beijos! E volte sempre =)
Acho que a palavra correta para este artigo seria – Magnífico. Eu tenho 54 anos, sou casado e bem vivido. Mesmo depois que minhas filhas nasceram, meu círculo de amigos permaneceu. Vivemos muita coisa junto e tentamos passar isso aos nossos filhos. Umas das coisas que sempre falamos é que amigo é aquele que compartilha os bons e maus momentos, mas também é aquele que perto ou longe fisicamente se faz presente, quer seja numa tarde de chimarrão ou num telefonema de 40 minutos pra dizer como a vida está. A vida e as pessoas são únicas! PS: no meu vocabulário essa palavra existe hehehehe >> insubstituibilidade!
Então proponho três brindes: à permanência, às amizades e à insubstituibilidade. Um abraço!
Que texto ótimo
Parabéns!!
É algo que sempre conversamos com os amigos e às vezes nos vemos no piloto automático tratando e sendo tratados como descartáveis
É sim, Rodolfo. Acho que a ideia é sair do piloto automático, lembrar que são pessoas como nós. Obrigado pelo comentário =)