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Nada é mais belo-horizontino que o fígado com jiló no mercado

Espremidas e em pé, centenas de pessoas bebem cerveja enquanto batem papo. Estamos no Mercado Central de Belo Horizonte, um lugar muito frequentado pelos moradores da cidade, que vão até lá em busca de produtos típicos e artesanato, entre outros itens. E, claro, do clima boêmio. Vários bares, todos com estilo parecido, de beber em pé ou no balcão, ocupam os corredores que dão acesso ao centro do Mercado. Foi nesses estabelecimentos que nasceu um prato que talvez seja o símbolo máximo da culinária dos botecos de BH: o fígado com jiló.

Combinação que não poderia ser mais polêmica. “O fígado é assim: quem gosta, então gosta muito, ama, mas quem não curte costuma odiar. E com o jiló é a mesma coisa. Fora que ainda tem muita gente que traz a memória da infância, porque não gostava de nenhum dos dois quando era criança”, me disse a Eliza Fonseca, conhecida por ali como a “loura” – ou só lora, em bom mineirês. Demorei menos de 10 minutos para comprovar a fala dela. Enquanto comia minha porção, duas amigas passaram em frente ao bar. “Nossa, odeio fígado. E ainda mais com jiló.”, uma disse para a outra.

A Lora, que foi a primeira mulher a comandar um bar no Mercado Central, gerencia um estabelecimento que funciona ali há pelo menos cinco décadas, mas que antes era chefiado pelo pai dela, o Paulinho – época em que o boteco da família se chamava Lumapa. Há 16 anos o nome mudou, meio que por iniciativa dos próprios clientes: qualquer belo-horizontino que frequente o Mercado Central conhece o Bar da Lora.

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A porção que fez a casa famosa serve entre duas e três pessoas e custa R$ 28,90. “Esse é o prato campeão, o que mais vende aqui”, conta a Lora. Em média são vendidos entre 30 e 50 por dia, mas em finais de semana a cozinha chega a fazer até 100 porções de fígado com jiló. Tudo isso acompanhado por uma cervejinha, cachaça ou algum drink. É muita gente comendo um prato que nasceu por conta de seu baixo custo.

fígado com jiló

O Mercado Central de Belo Horizonte foi inaugurado em 1929, quando era o principal ponto de abastecimento da capital mineira e até um abatedouro funcionava ali. Foi nesse contexto que fígado e jiló começaram a se sobressair, já que os dois produtos eram dos mais baratos que operários, açougueiros, feirantes e outros trabalhadores que frequentavam o local podiam encontrar.

A Lora acrescenta outra página nessa história, a do momento em que os dois ingredientes se juntaram. “Meu pai me contou que os bares já vendiam o bife de fígado acebolado, mas os próprios clientes pediam para acrescentar jiló. Muitos diziam: ‘põe essa comida de passarinho aí'”, contou ela.

O Bar da Lora já venceu o Festival Comida di Buteco, o Botecar e foi apontado pela revista Veja como um dos melhores da cidade. Fígado e jiló, por mais que sejam os campeões de vendas, raramente são os ingredientes escolhidos para compor o prato que vai concorrer nesses prêmios, justamente por que, bem, por que eles não agradam a todo mundo. Apesar disso, no prato que valeu o primeiro lugar no Comida di Buteco de 2010, o fruto estava lá: foi o “Pura garra da lora”, um garrão de boi com molho de Malzbier, acompanhado com purê de mandioca com queijo e, olha ele aí, jiló na chapa com linguiça.

fígado com jiló do mercado central

O fígado com jiló não é exclusividade da Lora, é bom dizer. Quase todos os bares do Mercado Central oferecem o prato – ou ao menos utilizam algum de seus ingredientes em outras receitas. O Casa Cheia, o melhor restaurante que funciona ali, tem um prato chamado Tradição do Mercado, que leva fígado e pernil grelhados na chapa com jiló acebolado a palito. O Restaurante do Jorge Americano, que faz um dos melhores PFs do centro da cidade, tem um prato que leva carne de panela, arroz, feijão, angu e, adivinhe só, jiló, e estabelecimentos como o Bar do Pelé e o Fortaleza também servem a porção tradicional.

O Bar Fortaleza é outro que se tornou famoso por conta da combinação, de longe a mais vendida da casa. Mas suas variantes também encontram seus fãs: os seis primeiros itens do cardápio do bar têm inspiração parecida. Eles servem fígado com jiló, pernil com jiló, chouriço com jiló… e linguiça, carne seca, contra filé – todos eles combinados com o fruto. Por ali a porção grande, que serve até três pessoas, custa entre R$ 28 e R$ 37, dependendo da carne escolhida. Há também porções menores, pedidas por quem passa no mercado sozinho e resolve almoçar. “Tem gente que vem aqui toda semana, todo mês. Essa geração mais nova perdeu isso um pouco, mas alguns estão levando a tradição em frente”, conta o Ronaldo Marques, que há 18 anos trabalha na chapa do bar Fortaleza.

Conhecido como Ronaldão, ele é outra celebridade do Mercado Central. A cada minuto passa alguém pelo corredor que o cumprimenta pelo nome. “Te vi na televisão”, diz um deles. É que o Mercado Central foi escolhido como o lugar que tem a cara da cidade, numa eleição realizada em 2017 e que comemorou os 120 anos de Belo Horizonte. Na época, o fígado com jiló do Fortaleza foi destaque na imprensa. “O dia aqui estava tranquilo. Uma hora depois da reportagem o bar lotou, trabalhamos muito. Todo mundo queria conhecer a porção que tinha aparecido na TV”, disse ele.

Os feirantes que viveram o começo do Mercado Central não sabiam, mas eles acabaram fazendo da comida de passarinho um ingrediente fundamental da culinária belo-horizontina.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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3 comentários sobre o texto “Nada é mais belo-horizontino que o fígado com jiló no mercado

  1. E um detalhe: apesar de improvável pelas “regras” da harmonização (já que o fígado é um alimento de sabor forte e gorduroso), a cerveja Pilsen combina perfeitamente com o fígado e jiló acebolado, trazendo a refrescância que precisa, para deixar a experiência ainda mais saborosa! Ou seja, uma harmonização cultural de primeira! 😀

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