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O milagre de Belo Horizonte e a Copa de 1950

“Eu acho que a realidade, no Brasil, é uma ficção. Minas Gerais foi escrita por Deus, Diabo, Shakespeare, Tolstoi e por aí.” A frase é do escritor e jornalista Roberto Drummond e fala do fantástico que há em cada esquina, mas bem que poderia ser sobre futebol. Seu autor, que assinou por anos uma coluna no caderno de Esportes do jornal Estado de Minas e morreu durante a Copa de 2002, pouco antes do jogo entre Brasil e Inglaterra, provavelmente concordaria com isso.

Eu me lembrei dessa frase quando comecei a pensar nas duas Copas que Belo Horizonte sediou: a de 2014, que eu vi de perto, e a de 1950, de que muito ouvi falar. E nas duas ocorreram resultados completamente inesperados e que acabaram por colocar a cidade no mapa mundial – não são poucos os gringos que, ao ouvirem o nome de minha terra natal, respondem com um sorriso e a frase “o local do 7 a 1”.

Mas se a Copa de 2014 está fresca na memória, a de 1950 também é cheia de histórias interessantes. E muito além do Maracanazo, nossa maior derrota (até chegarem os alemães). Em 50, aconteceu em BH o jogo que é considerado até hoje como a primeira grande zebra da história das Copas. Ou, para usar a expressão adotada pela FIFA, o milagre de Belo Horizonte.

antigo independência

O Independência, já no século 21, mas antes da reforma

Era a segunda rodada da fase de grupos e o recém inaugurado estádio Independência receberia o confronto entre Inglaterra e Estados Unidos. Aquela seria a primeira Copa dos ingleses, inventores do futebol moderno – por divergências com a FIFA, eles tinham se recusado a participar das três edições anteriores do torneio. Mesmo assim, eram os grandes favoritos da competição. Tinham o melhor jogador do mundo na época, o lendário Stanley Matthews, até hoje o jogador mais velho a erguer uma Bola de Ouro, aos 41 anos. E também um retrospecto extremamente favorável nos jogos anteriores.

Já os norte-americanos, bem, eles tinham um motorista de carro funerário. E também um professor infantil, um carteiro, um lavador de pratos e um estudante haitiano que foi achado pelo técnico dias antes da Copa e convidado a participar assim, de repente. Totalmente amadora, com jogadores que batiam bola apenas aos finais de semana e num país sem tradição no esporte, a seleção dos Estados Unidos se preparou para enfrentar o melhor time do momento.

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Cerca de 20 mil pessoas lotaram o Independência, todos desejosos de ver em campo a grande favorita. As casas de apostas britânicas pagavam 500 para 1 em apostas a favor dos Estados Unidos e, na véspera do jogo, o jornal Daily Express escreveu que, para ser justa, aquela partida tinha que começar com o placar em 3 a 0 a favor dos Estados Unidos.

Como era esperado, o jogo começou com pressão inglesa. E bolas nas traves defendidas por Frank Borghi, o goleiro dos EUA que nas horas não vagas ganhava a vida dirigindo um carro funerário – duas bolas no travessão nos primeiros 10 minutos. A pressão continuou, mas os ingleses não conseguiam furar a defesa adversária. Até que, aos 37 minutos do primeiro tempo, um raro chute dos EUA encontrou, meio que sem querer, a cabeça do estudante que ganhava a vida lavando pratos. E a bola foi parar no fundo do gol inglês.

A torcida, que tinha ido até ali para ver os ingleses, mudou de lado, e resolveu apoiar os norte-americanos. Achando que teria um jogo fácil, o técnico inglês tinha decidido deixar seu melhor jogador no banco. Como naquela época ainda não havia substituições no futebol, Stanley Matthews assistiu sentado a Inglaterra tentar, tentar e tentar, mas parar numa atuação memorável Frank Borghi, o goleiro que guiava cadáveres.

Fim de jogo, a torcida invadiu o gramado, carregou os jogadores dos Estados Unidos nas costas e eles seguiram em carreata pela capital mineira. Os ingleses, por outro lado, não acreditavam no que viam – e jornais londrinos, ao serem informados do placar, tomaram o 1 a 0 como erro e noticiaram que os ingleses tinham vencido por 10 a 1, relata o site da FIFA. Estados Unidos e Inglaterra não passaram da fase de grupos e se despediram da Copa no jogo seguinte.

Uma das grandes zebras da história das Copas, esse jogo se tornou famoso mundo afora, mas foi ignorado por décadas nos Estados Unidos, que só voltaram a disputar uma Copa do Mundo 40 anos depois. Foi só na década de 1990 que a inesperada vitória se tornou conhecida por lá – e, claro, virou filme. “Quanto mais velho eu fico, mais famoso eu me torno. Eu não fui famoso por 50 anos”, disse Walter Bahr em entrevista ao NY Times, o jogador que deu a assistência do gol norte-americano. Ele criou dois filhos jogadores profissionais de futebol, mas o americano.

Longe de ser o evento que se tornou nas décadas seguintes, a Copa de 1950 também movimentou as cidades-sede.“A Copa foi uma grande novidade. Os hotéis receberam muitos hóspedes, os bares encheram, todos se divertiram. A cidade era um entusiasmo só”, disse o jornalista Plínio Barreto ao site oficial da Copa de 2014.

Em duas Copas, a capital mineira viu resultados inesperados ajudarem a levar o nome da cidade para fora das fronteiras verde e amarelas – é engraçado ver o narrador do vídeo da FIFA tentando falar “Belo Horizonte”, para explicar o que aconteceu em 1950.  E olha que a derrota por 7 a 1 nem foi zebra – só o tamanho da goleada foi. Se fosse só uns 3 a 0 nem seria um Mineiraço.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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