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As cidades-sanatório brasileiras e a história da tuberculose

Castro Alves tanto sabia que ia morrer que deixou isso registrado. O poeta brasileiro sofria com a tuberculose, que no século 19 e meados do 20 era responsável por 57% das mortes causadas por doenças infectocontagiosas. “Um mal terrível me devora a vida”, ele escreveu, no poema Mocidade e Morte. E completou: “E eu morro, ó Deus! Na aurora da existência, quando a sede e o desejo em nós palpita”. Ele viveu até os 24 anos.

E não foi o único nome da arte brasileira a morrer jovem e por conta da tuberculose. Até a descoberta da estreptomicina, em 1943, a doença era uma das mais temíveis do mundo. E afetava pobres e ricos, artistas e gente comum, presidiários e Imperadores —  até Dom Pedro I morreu assim. Antes da chegada do antibiótico, o principal tratamento para a tuberculose envolvia uma técnica chamada climoterapia.

Foi por causa dela que surgiram as cidades-sanatório, como Campos do Jordão, São José dos Campos e Correias. E até capitais, como Belo Horizonte, passaram a ser procuradas por conta do clima de montanha.

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Climoterapia, os sanatórios e a tuberculose

A febre pode ser o primeiro sinal, mas o problema é que isso vale para muitas doenças. Tosse persistente, catarro, cansaço, dor no peito, sudorese, falta de apetite e emagrecimento são outros sintomas. Assim como a temida hemoptise — a tosse com sangue.

A tuberculose é causada pelo Bacilo de Koch, uma bactéria transmitida pelos perdigotos da respiração, da fala ou de um espirro. Uma doença que, mesmo com medicamentos e vacina, até hoje mata. Meio que sem querer, a tuberculose levou ao desenvolvimento de uma das cidades mais turísticas de São Paulo.

Se hoje Campos do Jordão é conhecida como a capital romântica do país, em meados do século passado a fama era outra, a de principal cidade-sanatório do Brasil. Localizada na Serra da Mantiqueira e com altitude média de 1600 metros, Campos do Jordão era o melhor endereço para a climoterapia. “Médicos começaram a comparar o ar da Suíça com o de Campos do Jordão”, explica Ana Enedi Prince, doutora e pós-doutora em História pela USP e autora da série Tuberculose e História.

“Desde o final do século 19 que várias pessoas iam pra Campos do Jordão por causa do ar. Na época se acreditava que a climatoterapia era muito eficaz no tratamento de tuberculose; uma teoria dizia que em determinados tipos de ambiente existia um componente que restaurava os pulmões”.

Ana Enedi Prince, autora da série Tuberculose e História

Por isso, doentes buscavam pela cura no clima de montanha de Campos do Jordão. E os sanatórios — edifícios grandes, afastados da cidade e onde centenas de pacientes passavam temporadas — não tardaram a chegar.

Lá os pacientes tinham atendimento médico, boa alimentação, descanso e lazer. “Todos os sanatórios tinham pianos, eles faziam sarau, então essa parte de divertimento era bastante desenvolvida. Porque a pessoa já estava triste, isolada, estigmatizada. E essa era uma forma de não entrar em depressão”, conta a pesquisadora.

Para evitar a transmissão, cada pessoa tinha seus próprios talheres, mas ninguém usava máscaras. E embora muitos pacientes morressem nos sanatórios, o índice de cura era alto. “Foi uma medida necessária e eficaz”, diz Ana Enedi Prince, que destaca ainda o preconceito que a doença gerava.

“A tuberculose, a princípio, era vista como uma doença que atingia principalmente os pobres. Porque dava nos cortiços, por falta de higiene, pelo fato das pessoas respirarem o mesmo ar”.

Ana Enedi Prince, autora da série Tuberculose e História

Se alguns pacientes passavam meses isolados de suas famílias nos sanatórios, a doença de outros causava a mudança da família inteira. Em Campos do Jordão, pensões surgiram para receber os parentes dos infectados, que passavam a morar na cidade, o que facilitava a visitação. Até crianças tinham casas de apoio. E se os pais morriam nos sanatórios, muitas acabavam adotadas por famílias da região.

Hoje, quem visita Campos do Jordão se encanta com a arquitetura europeia das casas, mas poucos se dão conta que esse clima de “Suíça brasileira” veio da climoterapia e da vocação da cidade no tratamento para a tuberculose. Após a descoberta da estreptomicina, os sanatórios perderam seu papel, e os pacientes passaram a ser tratados em casa. Só que a fama de Campos do Jordão continuou forte, com o ar da região sendo indicado para descansar.

“Campos do Jordão já tinha uma infraestrutura criada pra fase sanatorial. As ruas eram calçadas, não podiam ser de terra, porque eram lavadas a cada dia. Já tinha coleta de lixo, iluminação pública… muitas famílias ricas de São Paulo e do Rio de Janeiro passaram a construir casas de veraneio lá”, explica a pesquisadora. Segundo ela, na década de 1940 Campos do Jordão oferecia alguns dos melhores hotéis do Brasil. Nasceram assim as casas em estilo europeu. “As construções passaram a ser feitas dessa forma para fazer jus à fama da cidade”, completa.

campos do jordão

Campos do Jordão (Foto: Leandro Neumann Ciuffo)

A tuberculose romantizada pela boemia

As gargalhadas foram tão intensas que interromperam a peça: é que os risos causaram um forte acesso de tosse coletivo. E poucas coisas eram menos indicadas para um sanatório do que vários pacientes tossindo sem parar. O responsável pelos risos foi Nelson Rodrigues, então com 23 anos e que estava no Sanatorinho, em Campos do Jordão, pela primeira vez. Nelson sofreu com a tuberculose por décadas — só essa primeira internação durou quatorze meses.

A experiência em Campos do Jordão moldou o trabalho do escritor, conhecido por mesclar comédia e tragédia em seus textos. E assim a carreira de Nelson Rodrigues na dramaturgia começou dentro do sanatório. É o que conta Ruy Castro, em O Anjo Pornográfico, biografia publicada em 1992: “Texto e título (daquela peça) se perderam, mas foi ela, e não ‘A mulher sem pecado’, cinco anos depois, a primeira experiência, digamos, dramática de Nelson Rodrigues”. Você encontra o livro aqui.

Se Nelson escapou da tuberculose, o irmão mais novo dele, Joffre Rodrigues, morreu com a doença, num sanatório em Correias, distrito de Petrópolis. Ele tinha 21 anos. “A tuberculose passou a ser romantizada. Passou a ser a doença dos boêmios, dos artistas, das pessoas que passavam a madrugada na rua, pegavam aquela garoa fria”, explica Ana Enedi Prince.

O sambista Noel Rosa foi outro que morreu com a doença, em 1937, quando tinha apenas 26 anos. Cerca de dois anos antes, Noel desembarcou em Belo Horizonte. Se veio de trem, ele certamente foi recepcionado pelo grandioso monumento Terra Mineira: uma obra de bronze, em que um homem com uma bandeira dá boas-vindas a quem deixa a estação. Na base, uma inscrição em latim diz “os montanhistas são sempre livres”.

cidade sanatório

Com altitude média de 900 metros e alguns bairros acima dos 1300, a capital mineira foi outra das cidades-sanatório do Brasil. Inaugurado em 1928, o Sanatório Minas Gerais foi o terceiro do país. Logo vieram outros, muitos deles afastados da cidade. Com o fim da fase sanatorial, muitos desses edifícios viraram hospitais gerais, e hoje estão inseridos no sistema de saúde de Belo Horizonte.

Se Noel Rosa passou seis meses fugindo do sanatório para curtir a noite belo-horizontina, Monteiro Lobato foi outro que viveu uma temporada em Campos do Jordão, mas acompanhando o filho, Guilherme, que tentava se curar da tuberculose.

E Manuel Bandeira, que sofreu com a doença desde a adolescência, passou por sanatórios em Teresópolis e até na Suíça. É dele o poema pneumotórax, nome de um tratamento para a tuberculose que envolvia a inserção artificial de ar no pulmão, mas que deixava sequelas. A técnica parou de ser usada nos anos 1960.

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos
A vida inteira que podia ter sido e que não foi
Tosse, tosse, tosse

Ismael Nery, pintor surrealista do começo do século 20, também morreu com a doença. A história foi mais tarde contada pela viúva dele, a escritora Adalgisa Nery, no espetacular A Imaginária, livro que você encontra aqui.

Resignação Diante do Irreparável

Ismael Nery – Resignação Diante do Irreparável

No exterior, a peste branca foi a responsável pelas mortes de George Orwell, Franz Kafka, Frédéric Chopin e Dom Pedro IV de Portugal — o nosso Dom Pedro I, que tinha abdicado ao trono brasileiro e retornado para o Velho Continente.

No século 19, a tuberculose marcou ainda as vidas de Castro Alves, que morreu aos 24 anos, Casimiro de Abreu, que morreu aos 21, Álvares de Azevedo, aos 20, e Augusto dos Anjos, aos 30. É deste o poema “Os Doentes”:

Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!
Expulsar aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência…

Em pneumotórax, Manuel Bandeira pergunta a um médico se algum tratamento poderia salvá-lo, mas ouve um não. “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”, completa o poeta.

Para saber mais sobre o tema

Série Tuberculose e História, Ana Enedi Prince, Cabral Editora Universitária

Em uma série de livros, a autora resgata a história da doença no Brasil. Saiba mais aqui

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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