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E se as fronteiras não existissem?

Quando a Escócia votou “não” naquele plebiscito para decidir se ia se separar do Reino Unido, no ano passado, eu fiquei um pouco desapontada. Sei lá por que eu torcia a favor da separação, acho que só de birra da Rainha. Mas isso foi até eu ler uma frase do Vargas Llosa que me fez pensar.

“A sensatez com a qual votaram os escoceses nesse plebiscito deveria servir para se opor, de alguma forma, a essa mobilização irracional que, no século da globalização e o lento desaparecimento das fronteiras, a história se empenha em desandar e enjaular os cidadãos em prisões artificialmente fabricadas pela vitimização, a falsificação histórica, a demagogia e o fanatismo ideológico.”

O artigo inteiro está aqui e eu não concordo com tudo o que ele diz, mas essa parte específica me fez questionar se realmente o mundo precisa de mais fronteiras, divisões, caixinhas separatórias. É claro que não me refiro a casos como o do Tibet, onde existe perseguição e dominação cultural e religiosa. Mas, no fundo, o ideal de tornar o mundo um só, bem ao estilo John Lennon, é muito mais coerente com tudo o que eu acredito.

Não que eu ache que viveremos para ver esse planeta completamente livre de demarcações. Pensando bem, eu nem consigo imaginar como seria um mundo assim (ao contrário do Lennon). Precisaríamos de um novo conceito de cidadania, de espaço e de aceitação da diversidade.

E a minha incapacidade de conceber um mundo sem fronteiras já reflete a força que elas ainda têm. Essas linhas imaginárias podem até ser invisíveis, mas são ao mesmo tempo concretas e limitantes.

O lugar onde a gente nasce é um importante elemento na formação da nossa identidade. Goste você ou não, nosso país é uma parte imensa de quem somos. Somos moldados não apenas por nossa cultura, mas pelo sistema político, predominância religiosa e situação econômica em que vivemos.

Mas não somos iguais. E se em grande parte somos influenciados pelo nosso país de origem, é muitas vezes incomodo que o mundo forme uma imagem de nós com base no local onde nascemos. Que definam quem somos de acordo com a cor do nosso passaporte. Afinal, essa é toda a base de preconceitos históricos.

Traçados determinantes

Uma das coisas que mais me deixa perplexa sobre fronteira é como uma linha que só existe na cabeça das pessoas pode transformar tanto a realidade de alguém. A primeira vez que eu pensei sobre o tema foi quando participei de uma viagem envolvendo blogueiros de diversos países. As meninas da Ásia tiveram problemas para conseguir vistos de turismo para a Europa. “Essas são as dores de ser um cidadão asiático”, disse uma delas.

Eu, por outro lado, desembarquei na França sem nenhuma autorização prévia e sem grandes sustos. Foi quando eu percebi que o simples fato de ter nascido em um país cristão, alinhado com os interesses do mundo ocidental, latino e em desenvolvimento me garantiu mais privilégios que alguns e menos que outros. Outro dia eu li que os nepaleses sonham com esposas brasileiras por causa da força do nosso passaporte. Para certas pessoas, o direito de ir e vir e conhecer essa Terra que também lhes pertence não está ao alcance de um avião.

Dependendo de qual lado dela você nasce, você pode ter acesso a todos os direitos humanos básicos ou não, mesmo que a divisória esteja a poucos metros do lugar onde você vive. Crie um traçado que passa por cima da auto-determinação de um povo e você coloca boa parte de um continente em guerra, destrói idiomas milenares, transforma toda uma cultura.

E a maior prova de que tudo isso é completamente aleatório e arbitrário é que as fronteiras mudam o tempo inteiro. Se um imperador inventasse de marchar por cima da sua vila lá na Idade Antiga, pimba! Você se tornava um membro do Império Romano. Dependendo do lugar e da época onde você nasceu na Europa, pode ter tido umas três nacionalidades ao longo da vida.

No fundo, essas questões fronteiriças estão muito mais ligadas a interesses políticos e questões diplomáticas que à identidade cultural de um povo. Por esse motivo, me parece meio injusto que os indivíduos sejam tão profundamente afetados por elas. Mas somos e não há muito o que fazer. Felizmente, caminhamos na direção de tornar as fronteiras mais maleáveis. E se jamais vamos conseguir nos livrar completamente delas, que a gente pelo menos tente minimizar as que existem nas nossas concepções.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones, no Youtube e em inglês no Yes, Summer!. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

Ver Comentários

  • Muito bom o post. Às vezes me pego refletindo sobre coisas idealistas como essa. Pensar em um mundo onde todos possam trafegar livremente pelas lugares, se estabelecer onde quiserem, desfrutar das belezas ao máximo desse planeta é sem dúvida uma ideia que me apaixona e ao mesmo tempo amedronta. Quem sabe um dia.

  • Fronteira pra mim é uma palavra mágica... Moro perto das fronteira com o Uruguay e Argentina e tenho um prazer enorme em viajar pra estas fronteiras, mesmo porque, é como se elas nãos existissem porque não precisamos se quer apresentar documentos se não formos barrados pela aduana... Basta atravessar a rua e Já estamo em outro país, outra cultura, outra língua e outra gastronomia e isso pra mim é extraordinário. Vivo em Carlos Barbosa/RS a 6 horas de carro de Santana do Livramento/RS e Rivera/UY#maravilhosopoderusufruirdestasfronteiras#

    • Não imagino o mundo sem fronteiras, imagine o mundo sem países,na minha opinião seria um pesadelo,do nada por exemplo o Brasil não existisse mais, seria horrível ver o meu país desaparecer.

    • Que maravilhosos cruzar fronteiras assim, de forma cotidiana, Maria! Imagino que pra você elas devem parecer bem mais maleáveis,né?
      =)
      Abraços

  • Excelente post Natália!!! Eu acho que os brasileiros deveriam ser estimulados à viajar mais mesmo as pessoas com menor poder aquisitivo simplesmente para entender que há diversas outras perspectivas além do bairro da pessoa. Bairro ou cidade ou o Brasil como fronteira mental que deve ser derrubado, acho que esse é a fronteira mais forte que há. Tem diversos jeitos para viajar mais barato como couchsurfing, Aiesec, the.bug.travel. Estes sites ajudam as pessoas a viajar mais(ou mesmo hospedar gringos), gastando menos e desenvolvendo nelas diversas habilidades ao ajudar outras pessoas recebendo em troca acomodação e alimentação por exemplo.

    • Também acho que essas fronteiras mentais devem ser as primeiras a cair, pois elas que criam os preconceitos e nos afastam uns dos outros. Obrigada por comentar!

  • Interessante seu Post natália , eu desejaria viajar pelo Mundo como (ao que parece) você faz , As fronteiras são so imaginarias , nos as contruimos e no fim é como dinheiro , So tem valor Porquê acreditamos q tenha , se não não tem valor nenhum , eu se podesse viajaria para a argentina , chile , Eua , canadá e Pela europa toda (desejinho pequeno né haha)Mas como não posso tento saber o maximo que posso sobre esses países para que se um dia eu tiver meios de viajar ja saiba um Pouco sobre eles

    As fronteiras podem ser incomodas , mas são parte do nosso Mundo , e ajudam o ser humano na sua identidade

    Otimas viajens pra você Natalia ! boa sorte

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Publicado por
Natália Becattini
Tags: Reflexões

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