Toda crise é uma oportunidade

George era um cara determinado. Depois de estudar no exterior, ele retornou para a França com um objetivo: ser artista. Mas o George era também parte de uma família rica, dona de uma fábrica de sapatos em Paris. E o pai dele não ficou nada contente com os desejos do filho sonhador, que foi forçado a abandonar seus objetivos e trabalhar no negócio da família.

Até que o pai do George se aposentou e ele pode vender sua parte nos negócios para os irmãos. Com o dinheiro da venda, George comprou um Teatro, batizado de Théâtre Robert-Houdin. O nome homenageava o mais importante mágico francês do século 19. Ahh, isso é importante: o George era fascinado por mágica e ilusionismo. Os espetáculos do Teatro dele eram sempre cheios de truques e logo conquistaram o público. Perto de completar 30 anos, George era, finalmente, bem sucedido na área que ele tinha escolhido amar.

Até que uma nova mágica tomou conta da praça. Dois irmãos, Auguste e Louis Jean, apresentaram ao mundo o cinematógrafo, uma espécie de antepassado das câmeras de vídeo. Era o fim do século 19. Auguste e Louis percorreram a Europa mostrando seu trabalho, capaz de capturar movimento. E, claro, capturando dinheiro da plateia. Não faltou quem topasse pagar o ingresso, que custava 1 franco. Entre eles estava o George, que viu no negócio dos irmãos Lumière uma oportunidade e uma ameaça.

A ameaça era óbvia: o ilusionismo mais quente do momento era feito com uma câmera, ou melhor, com um cinematógrafo. E esse novo espetáculo formava filas na porta de onde era exibido. Um dos primeiros filmes dos irmãos Lumière durava apenas 50 segundos e mostrava um trem chegando numa estação. A imagem, por mais que fosse banal, causou uma grande confusão, gerando correria na plateia, que fugiu do local achando que o trem sairia da tela e invadiria o mundo real.

Como um mágico poderia competir com uma ilusão tão poderosa, capaz de fazer pessoas correrem de medo – e depois correrem de volta para a sala de exibição, prontas para gastar mais dinheiro? Simples: O George tentou comprar o tal do cinematógrafo por 10 mil francos, oferta que foi recusada pelos irmãos Lumière.

Esse foi o momento decisivo da vida do George. Ele poderia ter desistido. Poderia aceitar a concorrência com o espetáculo dos irmãos Lumière. Poderia ter voltado a fazer o que ele fazia há anos – e que dava certo. Mas, ao perceber que o mundo estava mudando, ele preferiu apostar tudo que tinha e ser um dos motores de mudança. O George, que na realidade se chamava Georges Méliès, muito prazer, viajou o mundo, pesquisou bastante e por fim conseguiu ter seu próprio cinematógrafo.

Mas, ao contrário dos irmãos Lumière, que usavam o equipamento para filmar coisas banais, do dia a dia, o George resolveu contratar artistas, criar cenários, bolar roteiros e usar um monte de efeitos especiais. Assim nasceu o cinema, com a ajudinha de um mágico.

Tempos de crise

Crise. Essa foi a palavra de ordem em 2015, um ano de crise política, econômica e na vida de muitas pessoas. 2016 entrou e, claro, a crise não acabou, como se a virada de ano fosse um passe de mágica do Georges Méliès. Continuam os problemas, desafios, dores e, o mais importante deste cenário, as oportunidades.

Ninguém explicou isso melhor que John Kennedy, presidente dos Estados Unidos na década de 60. Em um de seus mais famosos discursos, que foi copiado inúmeras vezes por outros políticos, escritores de autoajuda e palestrantes motivacionais, ele disse: “Quando escrita em chinês, a palavra ‘crise’ é composta de dois caracteres. Um representa o perigo da situação. O outro representa a oportunidade”.

Segundo especialistas, o próprio Kennedy se aproveitou de uma oportunidade, o fato de norte-americanos não falarem chinês – a história da palavra crise em chinês é mentira. Mas o objetivo por trás dela, que é incentivar as pessoas a tomarem uma ação justo no momento de maior necessidade, não é.

O (péssimo) exemplo da Kodak

A sede da Kodak, nos Estados Unidos, chegou a ter 220 prédios e foi o maior complexo industrial do hemisfério ocidental. Durante décadas, pensar em fotografia era pensar na Kodak. O que poderia atrapalhar os planos de uma empresa centenária e multinacional? A crise.

Que, no caso da Kodak, atendeu pelo nome de câmera digital. O principal negócio da Kodak eram os filmes usados nas câmeras analógicas. Durante a década de 80, a Kodak chegou a tomar conta de 85% do mercado de filmes para fotografia. A chegada da câmera digital – e depois dos celulares com câmeras – reduziu de forma brusca a demanda por filmes, o que forçou a Kodak a pedir falência, demitir quase 60 mil pessoas e a implodir alguns dos prédios de sua sede, que foi parcialmente loteada e vendida para cobrir dívidas.

Mas poderia não ter sido assim. A Kodak desenvolveu a tecnologia de fotografia digital duas décadas antes das concorrentes. Com medo que isso atrapalhasse o negócio dos filmes, o projeto foi engavetado. Até que a concorrência teve a mesma ideia e a Kodak, que poderia ter chefiado a mudança, ruiu ao tampar os ouvidos para o chamado do espírito do tempo.

A lição da Kodak não foi aprendida pelo mundo corporativo. A Blockbuster, que já foi a maior rede de locadoras do mundo, lá período jurássico, teve a oportunidade de comprar a Netflix por uns trocados, mas não quis. O Yahoo poderia ter comprado o Facebook, mas preferiu não colocar a mão no bolso. E a lógica persiste em 2016, com empresas de telefonia se juntando para lutar contra o Whatsapp, que é chamado de pirataria, e empresas de TV a Cabo prometendo uma guerra contra o Netflix e outros serviços de streaming. Uma guerra perdida.

Qual a importância disso na minha vida?

O mundo muda o tempo inteiro. A situação mais estável que pudermos imaginar nada mais é que um pedaço da história, uma virgula antes da próxima mudança violenta. Numa hora dessas, quando a mudança for inevitável, pode ser melhor aceitá-la e liderá-la do que lutar contra ela. Sai melhor de uma crise quem procura um caminho próprio, único e coerente com o espírito do tempo. O problema é que nossa tendência natural é seguir o efeito manada e repetir os mesmos formatos que davam certo antes da crise chegar. Formatos que não fazem sentido mais.

Trazendo isso para o 360, há uma leitura possível: nós vimos na crise do mercado de comunicação, que começou lá trás, com o surgimento da internet, uma oportunidade. Chance de mudarmos nossas vidas, de viajarmos mais, de termos mais liberdade. A mesma coisa tem sido feita por inúmeros nômades digitais, gente que percebeu que o modelo de trabalho tradicional, criado há séculos, ainda na era da Revolução Industrial, não tem sentido mais.

Percebendo a crise que nos espreita, muita gente mudou de ramo, simplificou a vida, se jogou nas oportunidades e tratou de criar um cenário melhor. Essa escolha pode ser empreendendo, como muita gente faz, ou simplesmente tomando decisões importantes na vida pessoal. Porque sim, a crise pode ser só na sua vida pessoal. E o primeiro passo para deixá-la para trás precisa vir de você.

Veja também: 12 carreiras para quem gosta de viajar

Tenho amigos que perderam empregos no ano passado. No meio de um cenário de incerteza, eles perceberam que conseguir outro emprego, naquele momento, seria complicado. A solução encontrada por eles foi juntar os cacos e fazer um intercâmbio, a tal sonhada viagem que era adiada há anos, justamente por conta de projetos profissionais.

Além de aproveitar a oportunidade que a vida deu, uma escolha assim oferece a possibilidade de você se reciclar, aprender outras coisas e voltar um profissional melhor. E quando o cenário talvez já tenha mudado um pouco. Segundo uma pesquisa da Associação Brasileira das Agências de Intercâmbio, a busca por cursos no exterior cresceu 600% no primeiro semestre de 2015.

Essa não precisa ser a sua escolha – e certamente nem é uma escolha possível para todos. É preciso analisar o cenário com cuidado, pensando no seu contexto e preferências. Tem quem pegue o dinheiro da rescisão e abra um negócio, seja uma franquia – outra escolha feita por muitos em tempos de crise – ou algo inovador. Tem quem mude de ramo e descubra que essa mudança era mais que desejada.

Independente de qual vai ser sua escolha, é bom ter em mente a frase do Kennedy, mesmo que a afirmação em si seja falsa. Toda crise é uma oportunidade. É possível sair dela melhor, colado ao espírito do tempo e pronto para encarar um mundo que mudou, afinal você mudou junto com ele. Ou podemos sair piores do que entramos, como a Kodak, e despreparados para viver num mundo que não entendemos mais.

Fotos: shutterstock.com

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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