Prioridades, privilégios, sorte e viagens

“Coceira no pé e sensação de não pertencer a lugar nenhum eu também tenho, só me falta o dinheiro :(“

Eu recebi o comentário acima em um post em que eu tinha sido marcada no Facebook, sobre viagens.  Eu entrei no perfil do cara, que eu não conheço, e me deparei com uma pessoa comum, que tem carro, casa e bicicleta. Perguntei para a amiga que me marcou na postagem quem era ele. E ela disse: “Aff, esse cara tem um apartamentão na região mais cara da cidade, da onde que ele está falando que não tem dinheiro?”.

Essa história me fez refletir sobre algumas coisas:

1. O mito social em torno de dizer que é bonito ter um espírito de viajante, alma nômade, coceira no pé, etc. Sinceramente, não é porque eu sou uma pessoa com esse estilo de vida e escrevo um blog com dicas para quem gosta de viajar, que eu acho que isso é para todo mundo. Ou que são melhores as pessoas que querem sair por aí viajando mais. Cada um sabe o que é o melhor para si. Muitas vezes parece que é mais bonito dizer que esse é o sonho da vida do que refletir se de fato você quer bancar esse sonho.

2. Alguém que tem um carro e um apartamento numa região boa me falar que não tem dinheiro para viajar é um sinal de que: ou as pessoas não sabem quanto custa uma viagem ou as pessoas acham que eu tiro dinheiro da árvore. Viajar é uma questão de prioridades. Viajar muitas vezes por ano ou morar no exterior é uma questão de abrir mão de um monte de coisas, incluindo carro, roupas, celular, etc, para conseguir sustentar esse estilo de vida.

Sim, eu acredito que o moço do comentário talvez não tenha dinheiro para viajar todo ano. Mas porque ele escolheu investir o dinheiro dele em outras coisas. Porque viajar não estava no topo da lista dele de conquistas na vida. Isso também é legitimo, só não pode deslegitimar quem não fez escolhas semelhantes.

“E eles vivem do que? Ou de vento ou de herança do papi?”

Esse comentário aí veio numa postagem do @CatracaLivre, que nos indicou numa campanha deles com a Tim Brasil sobre “pessoas inspiradoras” (morri de orgulho!). Eu acho que trata-se de uma combinação entre as duas coisas ali em cima: A primeira, de que viajar é uma coisa maravilhosa, porém, inacessível. A segunda, de que viajar é muito caro e só quem é muito rico pode fazer isso. E assim cria-se um ódio – ou pelo menos uma raivinha prévia – de quem viaja muito. Um julgamento cruel só porque escolher viajar muito ou fazer disso seu estilo de vida parece ao mesmo tempo uma decisão incrível e completamente insensata.

Vamos entender uma coisa: eu, o Rafa, a Naty e vários leitores deste blog somos pessoas privilegiadas. Falando dos meus privilégios, especificamente: eu tive o privilégio de nascer numa família de classe média, num bairro de classe média, de estudar em boas escolas particulares, de nunca ter precisado trabalhar enquanto estudava, de ter passado num vestibular de uma universidade pública, de ter condições de ter aprendido inglês, de poder morar na casa dos meus pais enquanto eu estudava e no primeiro ano depois de formada, de não ter nenhuma doença ou deficiência. Enfim, a lista é enorme – se você se interessa por esse tema recomendo ver esse vídeo aqui:

Meus privilégios me colocaram numa posição de conforto para tomar as decisões que me trouxeram aqui hoje. O fato de eu ter privilégios e reconhecê-los me faz entender que tem um monte de gente no Brasil que pode sonhar bastante, mas nunca vai conseguir viajar muito ou fazer um mestrado no exterior – aliás, tem muita gente que tem o sonho de ter comida na mesa todo dia e não está nem aí para viagens. Que essas pessoas trabalham muito, e duro, mas nunca vão conseguir sair do ciclo em que nasceram. Que seria não só inocência, mas também burrice da minha parte, achar que viajar é possível para todas as pessoas.

Mas eu também não concordo em falar de sorte. Eu conheço um monte de gente na mesma posição de privilégio que a minha falando que eu sou sortuda. Peraí. Não sou sortuda coisa nenhuma. Eu só foquei todas as minhas prioridades, trabalho e determinação em chegar aqui. Eu economizei todos os centavos que pude e continuo economizando. Eu pago diariamente o preço da distância, do trabalho sem hora para acabar, dos choques culturais e até do preço do euro.

E sei que mais da metade dos viajantes frequentes que conheço também é assim. Eu não conheço gente que vive de herança ou de mesada “do papi”. Aliás, até conheço pessoas desse status social que, como o moço do comentário lá em cima, me falam que não têm dinheiro para viajar. Não ter dinheiro para viajar é diferente de não ter dinheiro para outras coisas. Se você tem um cartão de crédito lotado de contas para pagar todo final do mês, quer dizer que escolheu gastar sua grana com essas coisas, não numa passagem aérea.

E não importa o quanto a gente bate na tecla de que viajar é possível para um grande número de pessoas (de classe média para cima, principalmente), a verdade é que eu recebo um sem número de comentários duvidando quando eu digo, por exemplo, que dá para conhecer a Europa com 60 euros por dia. Tudo. Todos os gastos. Tem gente que acha que tem que juntar o triplo disso para uma viagem econômica – por inexperiência e porque no Brasil há esse mito de que viajar é só para quem é podre de rico.

Tem gente que acha que os meus colegas de mestrado brasileiros são todos milionários que moram na Europa às custas de um benfeitor imaginário, quando na verdade são pessoas comuns, que ficaram anos juntando uma poupança para conseguir estudar no exterior e que vivem aqui uma vida bem simples para poder sobreviver.

Eu acho importante não confundir privilégio com sorte ou prioridades. Porque isso não só é negar os próprios privilégios, como também desmerecer aqueles que estão lá no final da fila desse jogo cruel da sociedade. E também não dá para tratar os sonhos e prioridades das outras pessoas como sorte. E nem achar que há sonhos melhores do que outros: ninguém é um ser humano melhor por querer viajar muito, estudar fora, ser nômade. Ninguém é pior porque quer ter casa, carro e conforto. Ou vice-versa. Esse tipo de mito só faz com que as pessoas percam tempo julgando umas as outras, em vez de fazerem o que realmente importa, que é viver a própria vida com dignidade e reconhecer com sinceridade aquilo que te faz feliz.

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Luiza Antunes

Luiza Antunes é jornalista e escritora de viagens. É autora de mais de 800 artigos e reportagens sobre Viagem e Turismo. Estudou sobre Turismo Sustentável num Mestrado em Inovação Social em Portugal Atualmente mora na Inglaterra, quando não está viajando. Já teve casa nos Estados Unidos, Índia, Portugal e Alemanha, e já visitou mais de 50 países pelo mundo afora. Siga minhas viagens em @afluiza no Instagram.

Ver Comentários

  • Ótimo texto Luísa! Eu também canso de escutar que tive sorte na vida!
    Mas aí quando eu digo pra todo mundo que comecei a trabalhar com 14 anos pra pagar minha escola, que saí do Brasil aos 19 com dinheiro emprestado pra procurar uma vida melhor fora do Brasil e que só depois de 10 anos conseguir cidadania europeia as pessoas se chocam. Recentemente fiz um post no meu blog contando como consigui viajar por 25 países trabalhando de garçonete. Foi um tapa na cara de muita gente:)
    Um abraço

  • E mais uma vez eu me deparo com os teus textos que me inspiram, Luiza!
    Inicio do ano passado, eu comecei a realmente me programar para a tao sonhada viagem internacional, sem um destino ainda certo e sem ideia do desfecho, mas de alguma forma eu sabia que dessa vez eu iria...
    Eu talvez ainda venha de uma situacao financeira menos favoravel que em alguns casos citados, porem, investir e contretizar esse sonho era a minha determinacao da vez!
    So eu sei o quanto segurei grana por tempos, por anos na verdade, o quanto deixei de comprar alguma coisa, e muitas vezes ser chamada de mao de vaca.
    Em setembro peguei minha trouxinha e embarquei para Lisboa e depois poucas outras cidades no caminho, mas acompanhada de sonhos, de planos, de leituras do 360, de coragem em fazer isso sozinha e de uma vontade incrivel de ter essa realizacao pessoal em minha vida...
    Cresci em 14 dias o equivalente a boa parte dos sonhos que sempre acalentei em muitos anos de vida, e cresci tanto que o material hoje, ja vejo como adornos nao tao necessarios.
    Oito meses depois da viagem, em uma segunda feira final do dia de trabalho, me avisaram que na segunda feira seguinte eu estaria de ferias, estava em semana de provas sofridas e finais da faculdade e ate quarta era esse o meu foco. Na quarta 11 da noite cheguei em casa, perguntei aos meus pais se estava tudo bem em eu ir novamente para Portugal, na quinta de Manha comprei as passagens, reservei dois dias de garantia de hostel, e no sabado ja sai. Tenho dividas no cartao hoje com as passagens, e so nao tenho mais porque voltei da outra com uns euros que sobraram e com uma vontade enorme de economizar para ir novamente, acrescentei o que precisava, e voltei de novo com um pouco. Andei muito, nao comi nada caro, conheci lugares lindos, gastei menos de 45 euros dia (com hospedagem, comida, transporte e uns passeios) e tive talvez dias tao felizes e intensos de formas iguais e diferentes ao mesmo tempo, realizada e pronta aos dois investimentos que hoje para mim eu vejo como de motivos de felicidade: passagens e autoconhecimento!
    Obrigada por tanta inspiracao Luiza! :*

    • Que história linda Cris!

      Fico muito feliz que você tenha tanta força de vontade para realizar seus sonhos.
      Obrigada por escrever

  • Ótimo texto, realmente não temos como comparar prioridades quando sabemos que cada um possui uma realidade diferente, não dá para querer que uma pessoa que rala o dia inteiro, estuda, tem família para cuidar veja viagem como uma prioridade.
    Sempre que posso viajo, e sempre, sempre, sou questionada sobre isso, sobre como tenho dinheiro para tanto, daí sempre respondo que é uma questão de prioridade, essas pessoas que me perguntam possuem apartamento e casas, carros, e assim por diante, e eu não, prefiro trocar essas coisas por viagens. Mas não recrimino a escolha de cada um, afinal, ela é individual e cada um sabe o que é melhor para si.

  • Excelente texto, concordo e muito com você Luiza.
    Sou uma pessoa relativamente nova, tenho 23 anos e trabalho desde os 18 para poder viajar sem depender de ninguém.
    Meus pais tem uma boa condição de vida, mas nem por isso eu fiquei na aba deles. Procurei arrumar um serviço pra poder sustentar minhas prioridades.
    Já viajei por Minas(meu estado), Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Ceará e Rio Grande do Norte. Agora em julho eu vou com minha namorada para Gramado no Rio Grande do Sul, e só consegui isso através das prioridades que assumi.
    Em 2018 farei minha primeira viagem internacional em um mochilão pela América do Sul, e o dinheiro começa a ser juntado em agosto desse ano.

  • Super show! Adorei o texto!
    Eu também penso que TUDO na vida é questão de prioridade.
    Eu não tenho coragem de gastar R$150 numa blusa, mas tenho em um perfume importado, qual o problema? Isso é o que eu prefiro! Assim como esse tem muitos outros exemplos.
    Temos que aprender a não julgar.
    Abraço,

  • Muito bom o texto. Nunca viajei pra fora do Brasil, mas já visitei e revisitei lugares aqui de acordo com o meu gosto. Minha primeira viagem para fora do estado (CE) foi no final de 2009 para assistir a um show, dali em diante eu entendi o jogo e a cada viagem aprendo algo novo sobre o que é ou não necessário gastar em uma viagem, o que posso ou não abrir mão, sobre o que quero mesmo conhecer e o que as pessoas acham que devo conhecer. Não nasci em uma família rica e estudei em escolas da rede pública a minha vida toda, me formei em uma universidade federal e, sim, as pessoas olham e exclamam: "ta rica", questionam: "mulher, tu ganha quanto?"... Posto uma foto e a maioria dos comentários diz de uma riqueza, que na verdade só existe se tiver se tratando das histórias e emoções que eu acumulo a cada viagem que faço. Sem contar que ninguém considera os perrengues que passamos nas viagens ou do quanto abrimos mão para estar ali. Pra mim, as viagens são sempre os melhores presentes que posso me dar, pois o que vejo e vivo em cada uma delas ninguém me tira... Não poucas vezes me pego recordando viagens antigas e me emociono, sorrio como se tivesse sido ontem.

    • Obrigada Alessandra!

      Engraçado o pessoal se achar no direito de te perguntar quanto você ganhar só porque escolhe gastar seu dinheiro em viagens.

  • Concordo com tudo! A +/- 3 anos eu resolvi realizar meu sonho de viajar para Europa e simplesmente parei de gastar dinheiro com bobeiras e comecei a juntar a grana. Depois de 2 anos juntando um pouquinho por mês, consegui viajar por 2 semanas e conhecer 3 cidades maravilhosas (Lisboa, Roma e Paris), e realmente 60,00 euros por dia é um ótimo valor/base para uma viagem econômica. Prioridade, foco e determinação são os diferenciais para vc conseguir realizar um sonho.

  • Luiza, que texto magnífico!!
    Está de parabéns. Concordo em gênero, número e grau!!

    Sucesso =)

    Beijooo

  • Esse texto focou em um ponto extremamente importante: a explanação do que vem depois do: "Você pode ser e fazer o que você quiser." Não, não é bem assim, isso é a ponta de um iceberg. Uma situação que vai variar muito de acordo com cada pessoa, cada classe social principalmente. Todos temos que lutar, batalhar pra conseguir atingir nossos objetivos. Mas será mais fácil para uns que para outros. Não viajo tanto quanto gostaria, talvez demore alguns anos até eu chegar na Europa. Mas não vou cansar de subir essa escada. Já andei um pouco pelo Brasil, estou chegando na outra parte da América do Sul. Tudo a base de muito trabalho, economia e prioridades, claro. Não podemos perder a esperança, jamais, mas precisamos sempre estar com os dois pés bem firmes na realidade.

    • Oi Matheus,

      Concordo demais: não dá para falar que qualquer um pode fazer e ser quem quiser no país que vivemos.

      Abraço

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Publicado por
Luiza Antunes
Tags: Reflexões

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