A vida precisa de um ctrl f

A vida é como o Windows: trava quando não pode, exige atualização quando não estamos preparados para isso e parece ainda mais lenta numa segunda-feira chuvosa. Mas se a vida pudesse ser só um pouquinho mais parecida com o sistema operacional, muita gente pediria um comando para desfazer as coisas. Fez merda? Aperta ctrl z e vai fazer um café para se acalmar.

Eu não recusaria a possibilidade de desfazer as bobagens da vida, mas seria ainda mais feliz se o universo tivesse instalado um ctrl f, não por acaso o atalho que mais uso no dia a dia virtual. Só assim para encontrar qualquer coisa na bagunça que é meu computador. Ou melhor, na área de trabalho do meu computador, já que, para facilitar as coisas, taco tudo lá e depois me viro para buscar o que quero em meio a 300 documentos.

Como a vida imita o vídeo, tendo a me perder na minha própria bagunça. Mas no mundo real não tem ctrl f que me salve, ou então eu não teria tanta dificuldade para encontrar as chaves de casa. Os óculos, necessários somente para dirigir, também são perdidos com frequência, junto com guarda-chuva e, claro, o controle remoto da TV. Que nunca está no mesmo cômodo que a TV. Pelo menos o telefone é fácil de ser encontrado – basta ligar para achá-lo soterrado por mil almofadas ou do lado da pilha de louça suja, a única coisa que eu nunca consigo fazer desaparecer. E olha que já tentei.

Tirando o guarda-chuva, objeto que compro frequentemente, uso duas ou três vezes e esqueço na primeira oportunidade em algum lugar, assim que para de chover, raras vezes perco algo para sempre. Tudo acaba aparecendo de volta, normalmente depois que paro de procurar. Meu maior problema, na realidade, não é perder as coisas. É achar que eu perdi.

Já nem sei quantas vezes perdi meu celular justamente enquanto falava ao telefone. Eu começo o papo e, minutos depois, bato a mão no bolso e percebo que o celular não está mais lá – preciso de alguns segundos para controlar o desespero e perceber que ele está colado ao meu ouvido. Já cheguei ao ridículo de falar ao telefone que alguém tinha furtado meu telefone, para perplexidade do meu interlocutor.

Mas a mais célebre das perdas ridículas, campeã do ctrl f desnecessário, foi durante uma viagem de trem entre Varanasi e Calcutá, na Índia, com mais de 13 horas de duração. Em minha defesa, entrei no trem sabendo que aquele era um dos trechos com maior frequência de furto de bagagem do país, o que pode ter me deixado ainda mais atrapalhado.

Para evitar furtos, o conselho da polícia indiana é que todo viajante compre uma corrente e prenda suas bagagens ao pé da cama. Com cadeado. Não chegamos a usar correntes, mas eu passava bastante tempo amarrando as mochilas umas às outras, para depois amarrar uma delas ao pé da cama. O ladrão poderia até levar alguma coisa, mas teria trabalho.

A única mochila que eu não amarrava era a menor, onde estavam guardados objetos importantes, como o computador, o celular, a câmera e os documentos, entre eles o passaporte. Essa mochilinha dormia comigo, como travesseiro. Só pra garantir – o ladrão poderia até levar alguma coisa, mas teria que conseguir fazer isso sem me acordar.

Veja também: Histórias de uma viagem de trem pela Índia

Trem Indiano 

No meio da noite, acordei com um movimento na cabine. Me levantei desesperado e fui verificar as bagagens que estavam amarradas no chão – todas permaneciam lá. Em seguida, revirei os lençóis em busca da mochilinha-travesseiro. Ela tinha desaparecido. Olhei de novo, acordei toda a cabine, mas não localizei a mochila. Desesperado, percorri o vagão de um lado ao outro e imaginei que o ladrão já tinha pulado do trem.

Pensei em pular atrás. Idiotice. Pensei em avisar a polícia. Idiotice maior ainda. Desolado, voltei para a cabine só para perceber que a mochilinha permanecia na cama, exatamente no mesmo lugar que tinha passado a noite inteira. No surto do sono, achei que tinha perdido algo que nem se moveu. Eu perco até o que não perco. E ainda passo vergonha. Pensando bem, tem horas que o ctrl z, atalho para desfazer bobagens, seria útil.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Esse texto.... \o/\o/\o/
    Sempre lembro daquele dia dia em que fiquei desesperada berrando: "meu Deus, cadê meus óculos?", para ouvir a resposta meio desconfiada do interlocutor: "Qual? Esse que tá na sua cara?" Sim, eu sou esse tipo de pessoa tapada....

  • Que texto fluído e gostoso de ler. Me identifiquei muito com sua mania de perder até o que não perde e acabou alegrando minha manhã. :)

  • Acho que nunca me identifiquei tanto com um texto, Rafa. E essa é minha maior preocupação em viajar sozinha. Perco o telefone 3 vezes por dia, já até "roubaram" ele propositalmente pra que eu parasse de perdê-lo mas é impossível...a síndrome de procurando Dory é real!

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Rafael Sette Câmara

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