O banheiro, a livraria e a representatividade fora do guarda-roupa

Se tem uma coisa que eu nunca me lembro quando estou explorando uma cidade vorazmente, é de banheiro. Sinto que sempre vai haver um café ou lugar pro pit stop quando a natureza convoca, mas às vezes não é assim, não. Dia desses estava caminhando por Londres, conhecida por ser uma das cidades mais caras do mundo. O preço da libra está pela hora da morte de um rei, como sempre. Minha bexiga chegou ao tamanho daquelas de festa de criança, e comecei a me desesperar ao olhar ao redor. Estava pela região de Saint James, onde se espalham lojas emperequetadas com selos de garantia de qualidade da realeza britânica. Nada era pro meu bico, menos ainda para minha bexiga.

Leia também: Um manifesto por um mundo com mais banheiros livres

Veja os outros textos da coluna LGBTQI+

Assim que vi a livraria Waterstones, entrei sem pensar. Apesar dela bancar o Harry Potter com o banheiro no piso 4 e 1/2 (juro, na escada entre o quarto e o quinto, o que me tomou certo tempo para achar), serviu para seu propósito. Aliviado, tomei o elevador para ir embora, até ver as indicações de conteúdo dos andares: no segundo havia uma sessão LGBT. Levei um susto! Nunca vi isso na vida, uma sessão inteiramente dedicada a conteúdo pra gente.

Para não me iludir, pensei que deveria ser uma prateleira escondida em algum canto escuro e úmido. Surpresa! Não só era de fato uma sessão completa, como estava enfeitada com umas bandeirinhas coloridas escrito “Love is Love”, que não deixava dúvidas do que se tratava. Esse é o valor da representatividade. É simples como encontrar uma sessão de livraria. Passei a hora seguinte explorando os títulos, e tem de tudo. O que mais me chamou a atenção, e consumiu alguns pounds, foi o “David Bowie Made Me Gay – 100 Years of LGBT Music”, uma bíblia de acervo musical queer.

Tem outros mais bobos e divertidos, como um Paper Doll Book dos figurinos mais icônicos já desfilados em Ru Paul’s Drag Race. Encontrei ainda biografias de mulheres trans, romances lésbicos melosos, uma análise das experiências gays do escritor Oscar Wilde, publicações de editoras grandes e outras independentes e até historinha água com açúcar equivalente àqueles amores héteros de filme da Sessão da Tarde.

Uma placa convidava para as reuniões do clube de leitura Velvet Page Book, que acontece toda primeira quinta-feira do mês, gratuitamente, às 19 horas, no café do mezanino da Waterstones. Na época, o livro em pauta era “Our Young Man”, de Edmund White, sobre um modelo decadente na Nova York dos anos 1980.

Quando alguns homens e mulheres mais velhos apareceram para caçar livros ali, fiquei pensando em como devemos muito às gerações anteriores por podermos desfrutar de uma sessão na livraria e tanta liberdade conquistada. O passeio vale mesmo para quem não se interessa por temas LGBTQI+, viu? Não faltam lindas edições, itens de design para leitores famintos e uma papelaria que dá vontade de comprar inteira. Uma grata surpresa revelada por uma bexiga cansada.

Waterstones Bookstore
203-206 Picadilly, St. James’s, London, UK
+44 (20) 7851-2400

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Victor Gouvêa

Meu pai sempre me disse que a melhor coisa da vida era viajar. Eu acreditei. Misturei as formações em Turismo e Jornalismo para viver de viajar e contar tudinho. Parti de uma cidadela de 30 mil habitantes para morar em SP, EUA e Alemanha, visitar mais de 40 países (e contando) e acumular as histórias mais malucas.

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