Viajar é viver com nostalgia

Começou na África do Sul. A primeira viagem internacional da minha vida – e praticamente a primeira em qualquer categoria – me ensinou que existe algo melhor do que achar um lugar legal para turistar. Cape Town, com seus cenários deslumbrantes, bons restaurantes e clima tranquilo, é o tipo de cidade em que dá vontade de morar. E são esses os lugares mais impactantes, os que nos fazem pensar em uma vida que não temos, uma existência que seria diferente, mas nem por isso sem sentido.

Meses depois desembarquei em Madrid, até hoje um lugar especial para mim. Foram só dois dias por lá, tempo suficiente para perceber que eu gostaria de voltar. Para morar. Madrid não tem muitos pontos turísticos, mas está cheia de bares, parques, restaurantes e ruas que convidam para uma caminhada – tudo que eu gosto numa cidade.

Embora eu tenha retornado com mais tempo, para fazer turismo, o dia de desembarcar como morador, mesmo que temporário, nunca chegou. E quem sabe se um dia chegará?

Madrid

Note que essa sensação não é exatamente um pertencimento puro e simples, mas um eu poderia pertencer a esse lugar e seria feliz vivendo aqui. E não basta que a cidade seja incrível – é preciso mais. Roma, por exemplo, é um dos lugares mais fascinantes do planeta, um conjunto de história e comida boa para ninguém reclamar. Eu visitaria Roma mil vezes e seria absurdamente feliz em todas elas, mas acho que em nenhuma teria vontade de morar ali.

Na Ásia é um pouco mais complicado, por conta das diferenças culturais, mas até lá eu achei um cantinho onde, num universo paralelo, eu poderia pertencer: Hong Kong. E não tenho dúvidas de que existem outros, afinal o mundo é grande e esgotá-lo é impossível. E aí que entra a sedução dessas outras vidas plausíveis, mas que provavelmente nunca acontecerão: quem eu seria se morasse numa vila do Himalaia? Como seria viver o dia a dia a dia de uma grande metrópole asiática? Ou numa praia do sudeste asiático?

No Brasil, minhas cidades favoritas são justamente aquelas em que eu me imaginaria vivendo, mesmo que elas não sejam as mais turísticas possíveis. Estou falando de Porto Alegre, com seu pôr do sol maravilhoso e os bares da Cidade Baixa; de São Paulo, nossa Nova York, onde já morei; e Belém, que é quente pacas, mas proporcionalmente linda. Curitiba, que conheci só recentemente, também merece um lugar na listinha de favoritas.

Eu não sou o tipo de pessoa que diz não ter raízes. Não só as tenho, como sei bem o local onde elas estão enterradas, um pedaço de terra compreendido entre a Serra do Curral e a Lagoa da Pampulha e arredores – e que atende por Belo Horizonte. Penso em mil vidas que não terei em outros cantos ao mesmo tempo em que tenho certeza de que minha vida favorita está aqui; sonho com a pessoa que eu seria em outros lugares, mas sabendo que só uma existência não é tempo suficiente para todas as pessoas que gostaríamos de ser. BH é, pra mim, casa. E vai ver todos os meus lugares favoritos têm um pouquinho, mesmo que num recorte muito específico, da capital mineira.

BH

Se não dá pra morar, pelo menos a gente finge. É nesse ponto que alugar um apartamento pode ser melhor que ficar num hotel; que ir ao supermercado para fazer compras durante as férias pode ser tão bom quanto comer num restaurante concorrido. São experiências reais, de dia a dia, que nos dão uma noção de como é não apenas turistar num lugar, mas viver a vida normal.

Acho que é por isso que gostamos tanto de viajar. Já que não podemos viver cada dia num cantinho do mundo, pelo menos experimentamos a sensação por um período, durante as férias. É como escreveu  o Fernando Sabino: “O diabo desta vida é que entre cem caminhos temos que escolher apenas um, e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove.”

Viajar é viver a nostalgia por todas aquelas pessoas que já fomos, mesmo que só durante as férias.

*Imagem destacada: Shutterstock.com

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Ai tu acaba de ler e dá aquele suspiro. São loucas essas nostalgias das vidas que poderiamos ter mas tambem da vida que estariamos deixando para trás.

    Balançou um pouquinho meu coração esse texto.

  • Que textão da porra!
    Seus textos tem um certo teor de poesia, show de bola.
    Esse estilo de viagemnos torna pessoas melhores, com mais fundamentos e respeitosos, claro isso não é regra, tem que estar aberto a essa ideia.

  • Olá Rafael,
    Gostei muito do seu texto, viajo há muitos anos,na maioria das vezes sozinha. Digo sempre que sou uma pessoa pra lá de volúvel quase volátil pois sempre me sinto em casa em cada lugarzinho novo e acho que gostaria de morar ali para sempre, essa sensação dura até a próxima cidade a ser desbravada. Aquela saudade de casa que a maioria das pessoas fala não é tão forte, tenho saudades sim das pessoas.

  • Seu texto retrata bem o sentimento que tenho quando viajo e fico imaginando morar nos lugares pelos quais passo. Pensava que apenas eu imaginava isso, pois achava um pensamento estranho porque não percebia isso nas minhas amigas, companheiras de viagem.
    Com é bom trocar experiências com quem tem o mesmo sentimento que a gente! Como é bom viajar!
    Um abraço!

  • "São experiências reais, de dia a dia, que nos dão uma noção de como é não apenas turistar num lugar, mas viver a vida normal."

    Sem dúvida a sensação de ir "descobrindo" uma cidade nova, procurando aquele cantinho mais "nossa cara", aquele bar mais barato ou com aquele drink especial, aquele parque que tem uma carinha de "meu parque".

    Excelente colocação, o melhor de turistar é fingir não ser turista hahaha =D

  • Como sempre os textos do 360, principalmente os seus Rafael, se encaixando perfeitamente na minha realidade atual. Sou de uma cidade que cada dia mais tenho certeza que quero "ficar num emprego mais estavel", criar meus filhos e envelhecer...mas por hora, moro na cidade dos meus sonhos com aquela vontade absurda de viver em muitos outros lugares, justamente pq acredito que só passar como turista não será suficiente...como SP, NY e Sidney...e até BH está quase entrando pra minha lista tbm...inclusive, estava conversando um dia desses sobre a possibilidade de voltar pra minha cidade natal pela minha empresa, mas no meio da conversa, já me dei conta que ainda não é o momento...que tenho muito o que conhecer...enfim, legal saber que não sou a única que pensa assim...pq as vezes, as pessoas confundem e falam que "vc está fugindo de algo"...quando na verdade, é só essa curiosidade mesmo (:

    • Tudo tem seu tempo, Camila. Eu já tive o momento de querer ir pra fora da minha cidade natal, enquanto hoje estou no momento de ficar na minha cidade natal, BH, por causa da minha família. Mas um dia vou querer ir pra fora de novo. E assim a vida segue. :)

      Abraço.

  • 10/10 - Texto perfeito, tenho alguns lugares (Torres del Paine, Ushuaia, Aruba, Floripa) que adoraria morar e sempre fico imaginando como seria viver lá nem que fosse por um tempo, 6 meses, 1 ano, mas no fim as raízes acabam falando mais alto e continuamos com os outros 99 de nostalgia.

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Rafael Sette Câmara

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