Feira Kantuta, um pedaço boliviano de São Paulo

O calor subia forte do asfalto enquanto caminhávamos por uma rua do bairro Pari, próximo ao centro da capital paulista. Ao longo da via, dezenas de barracas de lona atraíam clientes. Tinha de tudo por ali: tendas onde cabeleireiros ajeitavam os mais diversos penteados, de crianças e adultos, outras que vendiam produtos típicos da Cordilheira dos Andes e uma verdeira praça de alimentação à moda boliviana, onde empanadas e antitucho – um prato feito com coração de boi – eram vendidas aos montes. Os letreiros e o idioma falado por vendedores e clientes deixavam claro: há um pedaço andino encravado no coração da maior metrópole brasileira. Vizinha de uma estação do metrô chamada Armênia e do Canindé, o estádio da Portuguesa, a Feira Kantuta é território de bolivianos.

E pra eles até o nome dá saudade de casa. Kantuta é uma flor, típica dos Andes, e que tem as cores da bandeira da Bolívia: vermelho, amarelo e verde. A flor, que era sagrada para os incas, é um símbolo nacional do país. Para os milhares de bolivianos que passam pela Feira Kantuta, que é realizada todos os domingos, essa é uma oportunidade de reencontrar amigos, comer comidas típicas, comprar produtos bolivianos, dançar e celebrar a terra natal. O local fica ainda mais cheio em datas importantes, como no dia 6 de agosto, a Independência da Bolívia.

Veja também: Nosso guia de viagem para São Paulo

Empanada na Feira Kantuta

O número de bolivianos vivendo em São Paulo é motivo de polêmica, por conta da situação de boa parte deles, que está no Brasil de forma ilegal. O Censo de 2010 registrou quase 18 mil bolivianos vivendo de forma oficial na capital paulista, um aumento de 173% em 10 anos, mas o número real é muito maior.

Segundo o Consulado da Bolívia, entre 100 e 200 mil bolivianos podem estar vivendo em São Paulo. E não é difícil achar fontes que garantem que a comunidade de imigrantes bolivianos na capital paulista já alcançou meio milhão de membros, o equivalente ao número de moradores de cidades como Londrina, Santos e Florianópolis.

Bolivianos vivendo em São Paulo (Foto: Alf Ribeiro/shutterstock.com)

A Feira Kantuta

A Feira nasceu em 2001, mas em outro endereço, a um quilômetro do atual. O crescimento no número de expositores, a pressão de outros moradores do bairro e a inserção no calendário dos imigrantes forçaram a mudança para um local mais amplo, entre as ruas Pedro Vicente e Olarias. Já havia uma praça ali, que teve seu nome alterado, a princípio informalmente, para Kantuta. Hoje, a feira reúne mais de uma centena de barraqueiros, além de pelo menos três mil pessoas, todos os dias.

Embora tenha ficado conhecida na cidade, a maioria absoluta dos frequentadores da feira vem da Bolívia. Pelo menos nesse pedaço de São Paulo, os brasileiros é que são de fora. Por ali, espere ouvir e ler espanhol. Esse não é um espaço turístico, arrumadinho ou gourmetizado. É um terreno de valorização cultural, importantíssimo para uma colonia de imigrantes que pode até ser grande, mas é muitas vezes mal vista. E isso quando não é invisível aos olhos do brasileiro.

Se em meados do século 20 os bolivianos que chegavam ao Brasil tinham maior poder aquisitivo e vinham para estudar, a partir dos anos 90 o perfil mudou: chegaram milhares de trabalhadores em busca de oportunidades, gente que lotou as fábricas de roupas da capital paulista. Muitos deles chegam ao Brasil devendo ao empregador, que bancou a viagem, e entram numa rotina de mais de 12 horas de trabalho diárias, seis vezes por semana, com salários que costumam ficar abaixo do mínimo.

Não é raro encontrar relatos sobre bolivianos que viviam em condição de trabalho análoga à escravidão. Por outro lado, também não faltam depoimentos como o de Luis Vásquez, Presidente da Associação de Empreendedores Bolivianos da rua Coimbra, que garantem que a visão de que o boliviano que vive ilegalmente no Brasil faz trabalho escravo não só é equivocada, mas faz mal para a comunidade. Mais mal, inclusive, que as condições de trabalho encontradas pelos imigrantes, que realmente não são boas. Para saber mais sobre essa história, uma dica é assistir o documentário 100% boliviano, mano, feito pela Agência Pública. O filme acompanha a vida de Denílson Mamami, um adolescente de 15 anos que mora no Brasil.

É dentro deste contexto que surgiu a Feira Kantuta, que logo se tornou o principal marco de uma comunidade que não para de crescer e faz questão de se valorizar. Por ali é possível tomar uma Inca Kola, comprar roupas típicas dos andes e matar as saudades de casa. Os produtos são trazidos por bolivianos que fazem, todos os meses, a longa viagem rodoviária entre os dois países, que dura três dias.

Na quadra em frente às barracas, um grupo de adolescentes ensaiava uma apresentação. “Essa dança se chama saya”, explicou uma senhora boliviana, enquanto nos servia uma empanada de carne. Criada na região de Yungas, a Saya é uma dança afro-boliviana que carrega traços da cultura e música andinas. Hoje, a dança é usada como símbolo da luta desse grupo de bolivianos, dentro ou fora do país, gente que busca inserção social.

Como chegar e quando ir

A estação Armênia, da Linha Azul do Metrô, está a 800 metros da Feira Kantuta, que ocorre todos os domingos, entre 11h e 19h. Evite chegar muito cedo, porque a coisa começa a encher mesmo é por volta de 13h. No meio da tarde costumam ocorrer os ensaios e apresentações de dança na praça.

A programação fica ainda melhor em dias especiais para a comunidade boliviana, como a independência do país, celebrada no dia seis de agosto, ou a Festa de Alasita, em 24 de janeiro. Datas como o Dia das Mães, o Carnaval e feriados religiosos também são interessantes.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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