Festa do Çairé: fé e cultura amazônica em Alter do Chão

Várias pessoas se debruçam sobre dois troncos de árvore na praça de Alter do Chão, no Pará. Mulheres de um lado, homens do outro, é preciso enfeitá-los com folhas, flores e frutas. “Prende bem a cachaça, minha gente, que ano passado caiu na cabeça de um”, diz uma delas, e outras se juntam para amarrar, no topo do mastro, uma garrafa de 51. A cachaça ficará ali por quatro dias, junto com os outros enfeites, e será dada de presente para quem conseguir escalar até o topo do tronco no último dia de Çairé, festa folclórico-religiosa que ocorre todos os anos, no terceiro final de semana de setembro.

A origem da celebração remonta à chegada dos jesuítas no oeste do Pará, há cerca de 300 anos, quando a cultura indígena começou a se misturar às crenças católicas. Naquela época, os indígenas que tradicionalmente habitavam a região encontraram uma forma de homenagear os forasteiros imitando seus escudos, ou Çairé, na língua indígena. Eles confeccionavam o objeto utilizando cipó, algodão, tecido colorido, flores e outros adornos. O processo de catequização foi o responsável pela simbologia atribuída ao arco: as três cruzes centrais se unem no topo, representando a Santíssima Trindade.

O mastro erguido marca o início da celebração. As frutas simbolizam a fartura natural da região.

As celebrações começam sempre às quinta-feiras, quando um grupo de moradores do distrito caminha em procissão até a Praia da Gurita (Cajueiro) para buscar os troncos que servirão de mastros. Eles seguem, sempre atrás do Juiz e da Juíza, anciões que comandam os ritos da festa, até a praça da cidade, onde os mastros são enfeitados e depois erguidos. Dali até a segunda-feira, Alter se transforma em palco de procissões, torneios esportivos, festas e demonstrações folclóricas que reúnem todos os grupos da região, em uma verdadeira demonstração de toda a riqueza folclórica e cultural que mistura o sagrado e o profano do oeste do Pará.

A disputa dos Botos

As arquibancadas lotadas do çairódromo aguardam um dos pontos altos. Para conseguir um lugar ali é preciso garantir o ingresso com antecedência. O Festival dos Botos foi um dos elementos introduzidos recentemente no Çairé, para enriquecer a festa. Começou em 1997, quando os moradores de Alter do Chão se organizaram para homenagear a lenda do Boto, uma das mais tradicionais da Amazônia, com música e coreografias. Em 1999, a festa se transformou em um disputa acirrada e cheia de cores e simbolismo entre os  grupos folclóricos que representam os botos Cor-de-Rosa e Tucuxi.

Moradores da vila se mobilizam para confeccionar as roupas típicas borari que serão utilizadas em diferentes momentos da festa

As narrativas encenadas pelos dois botos abordam a sedução, morte e ressurreição dos personagens folclóricos. E também agregam elementos de outras lendas regionais e da cultura dos indígenas Borari, povo originário da região, como a Rainha do Çairé, o Cacique, o Pajé e os pescadores. O culto à natureza e ao lago verde, palco simbólico da apresentação, também marcam forte presença no espetáculo. Nele, o boto é assassinado pelo Cacique, pai da moça seduzida por ele. A morte do golfinho amazônico leva desgraça à vila, que passa a ser assolada por maus espíritos. Para reverter a situação, o próprio Cacique pede ao Pajé que reviva o boto.

As performances são avaliadas em diferentes quesitos, como o apresentador, letra e música, cantor, Rainha do Çairé, Cabloca Borari, Carimbó e torcida. As notas somadas definem o grande vencedor do Çairé. Como de costume, a disputa foi acirrada. A agremiação do Boto Cor de Rosa venceu o festival dos botos do Çairé 2019 com 464 pontos contra 463 para o Boto Tucuxi. O título garantiu ao grupo a dianteira no número de vitórias: 11 contra 10.

Êee, Boto Rosa chegou

Campeão da disputa de 2019, o grupo do Boto Cor-de-Rosa encantou os presentes com o tema “Alter do Chão: berço da vida”. A apresentação exaltou a diversidade e o ecossistema do maior aquífero de água doce do mundo. A importância de se preservar os rios e nascentes foi o ponto central do enredo, assim como a relação mística dos povos nativos com as águas que levam vida para a região. As roupas e alegorias foram confeccionadas por 20 artistas plásticos de Santarém, Alter do Chão e Parintins. Ao todo, o grupo contou com 800 dançarinos para compor o grande espetáculo da noite.

Ei, visitante, é o Boto Tucuxi

Do outro lado das arquibancadas, a torcida do Boto Tucuxi deu um show de animação. Uma enorme faixa em verde e cinza revelava o tema daquela noite: Resistência Borari, em homenagem aos povos indígenas que eram os moradores originais da região e, após serem dizimados, passam agora por um processo de resgate cultural por meio de seus descendentes. A agremiação reuniu 600 no Lago dos Botos e 23 pessoas trabalharam na confecção de alegorias e figurino. O resultado apertado mostrou que ambas as equipes estavam bastante empenhadas em mostrar toda a magia da Amazônia para o mundo.

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A viagem para Alter do Chão foi um convite da Secretaria de Turismo do Estado do Pará.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones, no Youtube e em inglês no Yes, Summer!. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

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Natália Becattini

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