Nômade digital: minha vida com uma mochila

Fiz meu primeiro mochilão aos 24 anos, mas sou mochileiro desde criança. Filho de pais separados, eu me acostumei a fazer as malas e trocar de casa quando tinha sete anos. Todo fim de semana era a mesma história: roupas na mochila, mochila nas costas, costas no banco do carro e vamos embora. Mais tarde a situação se tornou ainda mais complexa. Não satisfeito em morar em duas casas, resolvi que meu espírito nômade exigia mais. Durante pelo menos dois anos, morei em quatro casas. Quatro casas ao mesmo tempo.

Corta para 2008. O Rafael de 22 anos era o mais novo estagiário de um canal de televisão de Belo Horizonte. No meio da reunião de pauta, joguei meu chaveiro na mesa. “São as chaves das portas das casas. Umas 20 chaves, ao todo. Todo dia estou num lugar, cada dia numa cama. Por isso levo minha vida toda nessa mochila aqui, que sempre tem roupas suficientes para pelo menos cinco dias.” Não tenho a menor ideia do contexto em que contei isso lá, mas provavelmente foi porque a história chama atenção. “Você viu o estagiário novo? O doido mora em quatro casas, todas em Beagá. É cada tipo que contratam aqui…”

Mas qual o motivo para tantas casas? Bom, eu já cresci dividido em dois. Quando meu pai se casou novamente e deixou de morar com os pais dele, resolvi me dividir em três. E nessa mesma época comecei a passar vários dias no sítio de um tio, na região metropolitana de BH. Pronto: Rafael dividido em quatro. Vida nômade, ou pelo mesmo o ensaio geral para uma.

O começo da vida como nômade… digital

Eventualmente ficou complicado conciliar essa vida com a faculdade, então eu escolhi uma das quatro casas e passei a morar só lá, mas durante uma boa parte da minha vida eu andei com uma mochila nas costas, completamente equipada para me manter alguns dias longe de casa. De qualquer casa. Tudo isso me ajudou a encarar com muita naturalidade a vida realmente nômade que levei a partir de outubro de 2011.

Um dia eu trabalhava em BH, sem saber o que faria da vida. Dois meses depois eu colocava minhas coisas num mochilão e me preparava para viajar por 14 países do mundo, durante 10 meses. Minha viagem de volta ao mundo foi feita assim, de repente. Foram vários hotéis, cidades e camas espalhadas por quatro continentes. Check-in, seja no hotel ou em aeroportos, virou palavra comum na minha vida. Voos eram rotina e a cada semana eu estava numa cidade – algumas vezes eu mudava de país. Assim aprendi algumas coisas sobre a arte de viver com uma mochila nas costas. Tipo que…

O mundo é muito grande para ficar sempre no mesmo lugar

Já quis saber como teria sido se você tivesse nascido em outro lugar? Bom, ainda não é possível saber como é sua vida em outras dimensões, mas você pode simplesmente se transportar para outro lugar nesta dimensão. Nada te impede de fazer as malas e testar a vida em outro país. E veja bem: eu não estou incentivando ninguém a tentar carreira de imigrante ilegal. Você pode fazer intercâmbio em algum lugar, ou um curso de idiomas, ou simplesmente turistar durante um período maior. E ainda é possível testar a vida em outros lugares deste nosso país enorme e tão variado.

Sim, o mundo é muito grande para nascer e ficar eternamente no mesmo lugar, então basta desligar o modo árvore e esquecer aquele lance acusatório de “não ter raízes”. Seja Deus ou o acaso (deixo o autor para você escolher) te deu pernas, não raízes.  Use-as.  O mundo não é uma aldeia. O mundo não é só o seu bairro, a sua cidade. Ao mesmo tempo, nosso planeta já não é tão grande como era durante as grandes navegações. Viajar é relativamente fácil, seguro e até razoavelmente comum. Está esperando o que para fazer as malas? Ah, sim, e sobre malas eu também aprendi que…

Fazer as malas é uma arte, mas não é tão complicado assim

Dá para fazer qualquer mala, para viagens de qualquer duração, sem pensar muito. Eu gasto cinco minutos para separar tudo que preciso para ficar alguns dias na estrada. Para viagens mais longas, também não é necessário levar tanta coisa. O segredo é entender que você realmente não precisa de toda aquela tralha que passa a acumular quando leva uma vida fixa em algum lugar. O que é imprescindível para sua viagem?  Coloca isso na mala. O que pode ser que você precise? Deixa pra lá, já que o “pode ser” muitas vezes vira um enorme “não era”. E a última coisa que um nômade quer é uma mochila desnecessariamente pesada para carregar.

Imagina como você vai fazer para correr atrás de um ônibus no Vietnã, subir uma rua congelada no Himalaia ou pegar um metrô lotado em Paris, tudo isso carregando uma mala enorme? Pois é, então leve só o essencial. Em pouco tempo você descobre que tudo que é realmente necessário para sua vida cabe numa mochila. E nem precisa ser uma das grandes.

A rotina enche o saco

Eu morava em quatro casas porque não tinha paciência para viver numa só. Fazer as mesmas coisas todos os dias, acordar na mesma hora, trabalhar sempre no mesmo lugar, exercer sempre a mesma função… Não sei você, mas eu acho que a vida é curta demais para perder tempo sem explorar coisas novas. Os 10 meses que passei viajando parecem anos na minha memória, tudo por conta das experiências variadas que tive. Já os 10 meses que vivi desde que voltei ao Brasil parecem dias: culpa de uma rotina de trabalho, de nove às seis, que me faz desejar a chegada da sexta-feira a cada começo de segunda. E olha que no meio disso eu mudei de emprego, de casa, de cidade e ainda viajei várias vezes. Sim, a rotina faz com que a gente torça para a vida passar mais rápido! Qual o sentido disso? Desejo chegar logo no descanso eterno?

O fato é que rotina é uma merda e deixa tudo sem graça. Você pode lidar com isso de várias formas. Eu escolhi levar uma vida nômade, com uma mochila nas costas.  Quando fiz meu primeiro mochilão, pelo litoral do Brasil, eu achava o máximo chegar numa terça-feira e pensar “porra, há dois dias eu estava em outra cidade, vivendo coisas completamente diferentes, mas parece que foi há meses”. Enquanto isso, na vida dita normal a segunda é parecida com a terça, que é igual a quarta, que lembra a quinta…  Pois é, pra mim viajar equivale a viver mais. E melhor.

Nunca foi tão fácil ser nômade digital

Você não precisa levar toda sua tribo junto. Não precisa estar preparado para enfrentar inimigos e lutar guerras. Não precisa abrir mares, como o Moisés do êxodo hebreu. Não precisa nem mesmo cruzar mares dentro de navios, como fizeram tantos exploradores. Você sequer precisa ficar sem trampo e sem dinheiro, mendigando. Basta entender que o mundo atual favorece ao estilo de vida de nômade digital. (Não sabe o que é isso? Leia mais aqui).

Semana passada essa tirinha apareceu na minha timeline do Facebook. Acho que ela expressa exatamente a incoerência no estilo de vida atual. A viralização não me indicou o autor, mas concordo com ele completamente.

Nosso mundo é digital. Nós vivemos online, estamos presentes o tempo inteiro, somos ligados uns aos outros. Se muitos trabalhos não precisam mais ser presenciais, por que diabos as empresas exigem a presença do funcionário, de nove às seis? Ideologia, apenas. Na prática, outra vida é possível. Basta colocar a mochila nas costas.

Nós últimos seis meses, me mudei e virei morador de São Paulo, o que não deixou de ser uma nova experiência. Este post é um manifesto pela vida nômade digital: em breve será tempo de partir novamente, viver em lugares abertos, e não apenas sonhar com eles. Ainda bem que eu aprendi a fazer as malas e viver com uma mochila nas costas aos sete anos.

Foto destacada:  Hong Kong International Airport, Wikimédia Commons

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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