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África: o continente invisível

“Quero ir para a Etiópia”, eu disse, depois de enumerar outros destinos não muito convencionais na Ásia e Leste Europeu, enquanto conversava com uma conhecida sobre lugares que eu tinha vontade de visitar. “Eu gosto de destinos exóticos, mas não iria a um lugar em que me colocasse em perigo”, ela respondeu. “Então a Etiópia é perfeita para você. É um país pacífico”. Ela me olhou com descrença.

Não importava que eu estivesse falando de um dos países com história mais antiga do mundo, cheio de joias arquitetônicas e belezas naturais. Ele faz parte daquela região do planeta onde apenas dois sentimentos se aplicam: medo e pena.

África do Sul

A África é um continente enorme, gigantesco. Poderia abrigar toda a área dos Estados Unidos, China, Europa, Índia e Japão dentro de seus limites territoriais. É lar de 54 países e de centenas de povos e grupos étnicos, cada um deles com sua própria cultura, costumes e crenças. Um continente plural, cheio de diversidade – que abriga o maior número de línguas do planeta, mas que as pessoas insistem em reduzir a um estereótipo que pouco abrange as nuances encontradas ali: para muita gente, tudo se resume a 30 milhões de quilômetros quadrados de pura miséria, fome, Aids e guerra, ainda que apenas seis desses países enfrentem conflitos armados atualmente. Mesmo quando a intenção é homenagear, os estereótipos insistem em surgir. Em filmes, na TV ou quando serve como referência estética para a moda, a  diversa e variada cultura africana é retratada de forma primitiva e caricata.

A informação que chega pra gente sobre essa parte do mundo é escassa e vista através das lentes da arrogância cultural do Ocidente. Não é raro escutar pessoas se referirem ao continente como se ele fosse um único país. Peça para qualquer pessoa apontar a Nigéria, o Gabão e a Zâmbia em um mapa. Garanto que muita gente não vai saber nem a região certa onde esses países ficam. Não consigo pensar em outro continente sobre o qual sejamos tão ignorantes. É como se entre o Egito e a África do Sul não existisse nada, nem mesmo uma nação, apenas um monte de tribos vivendo em cabanas de barro no meio de um deserto e tendo que lutar com leões.

Etiópia. Foto: Katie Hunt/Wikimedia Commos

Em um dos meus discursos preferidos do TEDx, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie nos adverte sobre os perigos da história única. Todos os dias, nós somos bombardeados com inúmeras histórias do Ocidente – no cinema, na literatura, no jornalismo – mas tudo o que temos são versões de uma mesma história sobre a África. Diante disso, nos esquecemos que muitas outras histórias acontecem o tempo inteiro e que uma história única não dá conta de toda a complexidade cultural de qualquer sociedade.

No jornalismo, aprendemos que as estruturas narrativas, a escolha de um ponto de vista e a forma como contamos uma história são muitas vezes uma opção ideológica. Essa visão pejorativa e simplista da África começou com o domínio Europeu, que acreditava que o Velho Continente era o único parâmetro para a civilização e classificava o que era diferente como selvagem, primitivo e pouco desenvolvido, esvaziando toda a complexidade e reforçando uma estrutura de poder que existe ainda hoje no mundo.

Repetir visões unilaterais só as fortalecem. Como viajantes, queremos conhecer e entender as culturas que estão por trás de todo o preconceito e distância que existe entre nós e eles para descobrirmos que não existe nós e eles, no fim das contas.  Como Chimamanda Adichie disse, os estereótipos apenas realçam o que temos de diferente e apagam as coisas nas quais somos iguais. É exatamente esse tipo de distanciamento que devemos evitar. A África merece todas as histórias que conseguirmos contar.

Imagem destacada: Domínio Público 

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones, no Youtube e em inglês no Yes, Summer!. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

Ver Comentários

  • Interessante texto quando se encontro do lado de cá. Estou a atravessar já fazem 15 meses que percorro o continente africano por terras saindo da África do Sul, Zimbabawe, Zambia, Mocambique, Malawi e Tanzania. E o que mais espanta é como vemos totalmente distorcido o continente africano pela mídia feito a sua maneira. Como jornalista também fui afetado sobre minha antiga visão destas terras...
    A África é linda! e muito, mas absolutamente diferente do que imaginamos. E me refiro ao lado não turístico da coisa.

  • Adorei o texto!
    A África é um continente que me fascina e, ainda assim, sei que minha visão muitas vezes não deixa de ser uma vítima de tantos dos esteriótipos criados.
    Quando escolhi Cape Town como destino para meu intercâmbio em 2010, as reações das pessoas não saiam muito do "Mas o que você vai fazer lá?", "Vai pro meio do mato pra quê?", "Só tem bicho em todo canto, como é que alguém pode estudar inglês na África?". Tenho até uma amiga que me mandou links de notícias que colocavam Cape Town entre as dez cidades mais violentas do mundo e dizia que com essa minha cara de brasileira e meu sotaque, eu seria uma vítima fácil dos bandidos e estupradores...
    Isso porque eu estava indo pra África do Sul, heim? Imagina falar em Nigéria, Etiópia, Quênia...
    Parabéns pelo texto e por trazer a tona uma reflexão tão importante!

    • Pois é, Carol, as pessoas se deixam levar muito por estereótipos e não procuram conhecer mais a fundo a realidade, e acho que, de todos os lugares do mundo, a África é o que mais sofre com isso...

  • Adorei o texto!

    Vou para Moçambique em janeiro fazer trabalho voluntário e cada vez que conto a alguém sobre isso, recebo uma reação diferente! Muitas das pessoas me olham com cara de espanto, e como você comentou no texto, achando que eu sou suicida! Mas também recebo reações diferentes, de pessoas animadas com a ideia. Sempre foi um sonho meu conhecer a África, assim como todos os outros continentes, espero poder mudar a visão das pessoas sobre ela.

    • Olá Ângela.
      Estava justamente conversando isso com minha mãe esses dias. Ao saber que tínhamos milhagens suficientes para 3 passagens para o continente asiático, eu, minha mãe e minha irmã mais nova escolhemos a China como nosso primeiro destino no tão sonhado "outro lado do mundo". Nossa viagem será em dezembro, e ao contar para as pessoas sobre essa tão esperada viagem, escutamos e visualizamos as mais variadas reações, que geralmente vão do estranhamento, passando pelo questionamento "nossa, não tinha Paris?" e chegando ao "nossa, que diferente!!". Pouquíssimas pessoas realmente chegaram com o típico: "nossa, que delícia, me leva na mala?". Isso porque estamos falando da China, um país teoricamente já mais aceito pelos ocidentais do que países da África por exemplo. É justamente o que o vídeo coloca (aliás, fenomenal, como tudo o que é produzido pelo TEDx): o perigo das estórias únicas, enfatizam como somos diferentes e minimizam o fato de que, apesar das necessárias e saudáveis discrepâncias, somos todos iguais. Abç

    • Ei Ângela! Te desejo uma boa viagem, sou louca para conhecer Moçambique! A África é uma grande injustiçada da história mundial. Ainda não aprendemos a dar a ela o seu devido valor.

      Abraços e volte sempre. =)

  • Belo texto! Também sou fascinada pela África mas sei muito pouco a respeito da história desse continente tão rico e instigante. Falamos tanto de preconceito e ignorância dos norte-americanos quanto ao Brasil e à América do Sul, mas na hora de falar da África fica difícil fugir dos estereótipos. Eu ainda quero conhecer esse continente lindo de perto -- depois que fiquei sabendo mais sobre Tanzânia, Uganda e Etiópia (Lalibela, meu deus!), não sossego enquanto não botar meus pés lá.

    Ah, e excelente essa dica dos 198 livros, fiquei inspirada!

    • Ei Mari, quem resolve pesquisar logo vê que a África vai muito além do que a gente pensa. É um continente tão cheio de diversidade, beleza e cultura quanto qualquer outro. Infelizmente o estereótipo da miséria ainda impera.
      Abraços!

  • Excelente texto!!! Tenho planos de visitar a costa leste africana, e toda vez que comento isso com alguém fica claro o quão pouco as pessoas sabem sobre o continente africano mesmo.

  • Natália, parabéns pelo post! Bem escrito e inspirador :) Também adorei essa ideia do Viaggiando dos 198 livros, que eu não conhecia. Vou ficar de olho lá e aguardar a resenha sobre o livro que você tá lendo! Um abraço.

  • Oi, Natália! Concordo com você - e fiquei feliz de você mencionar esse vídeo do TED, porque sempre li e achei sensacional, mas ficava impressionada em como são poucas as pessoas que o viram ou perceberam a verdade que está por trás disso.
    Acho que todo o mundo tem essa visão de que a África é um grande universo de flagelo e fome, mas acho que nem é preciso ir muito longe: muita gente pensa o mesmo da Colômbia (guerra e tráfico), Guatemala, Honduras (pobreza)... E por aí vai. O máximo que eu vi da África foi o Egito e tive a oportunidade de ir para os cantos mais afastados, bem na meiuca do deserto por exemplo, para voltar absolutamente encantada - e nessa viagem tinha conhecido uma mulher que tinha acabado de voltar de Ruanda, com fotos alucinantes. Desde então tem ficado na minha lista, para desespero dos meus pais e total incompreensão dos meus amigos. Aliás, mais que invisível, a África é incompreendida, não é mesmo?

    • Ei Clarissa, esse vídeo é incrível, um dos melhores que já vi. Dá vontade de sair indicando ele pra todo mundo que eu conheço, pq ele fala sobre a África, mas na verdade está falando sobre tudo nessa vida, não é? Realmente nem é preciso ir longe, mas eu acho que no caso da África é um pouco mais grave, pq as pessoas tratam como se fosse uma coisa só, um país só, homogêneo. O que não é o caso da Colômbia e da Guatemala, por exemplo. Enfim, realmente é um gigante incompreendido. =/

  • Adoro o seu blog. Esta nós meus favoritos. Vc pode colocar no blog, ou indicar onde eu acho essa lista dos 198 livros ?
    Bjs

    • Ei Marizete, não existe uma lista fechada. Esse é um projeto que começou no blog Viaggiando (https://www.viaggiando.com.br/). O objetivo é ler um livro de cada país do mundo. Eu achei a ideia interessante e resolvi fazer o mesmo, mas sem compromisso. Ainda estou no primeiro livro, sobre a palestina. Vou fazer uma resenha dele aqui no blog quando eu terminar de ler.

      Abraços e obrigada pelo comentário!

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Publicado por
Natália Becattini
Tags: Reflexões

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