O inferno que é o assédio na rua em qualquer lugar do mundo

Eu e minha mãe estamos sentadas no trem conversando animadamente sobre o passeio incrível que acabamos de fazer. Pela janela, o céu está rosado com os últimos raios de sol. Olho brevemente para outro lado e percebo que o senhor sentado em frente a gente, na fileira oposta, tinha o celular apontado para mim. Escuto um clique típico da câmera. Ele me vê olhando e muda de posição, passa a mexer em uns papéis que tinha na mão.

Cutuco minha mãe e falo: acho que aquele cara tirou uma foto nossa. Nosso trajeto era curto, trem regional, quatro estações, meia hora. Mas os 10 minutos seguintes passaram bem lentamente. Minha mãe e eu olhando de rabo de olho para o tal senhor, que tinha uns 70 anos, conferindo se ele não tentaria tirar outra foto. O celular na mão. Por um instante, ele levantou a câmera e apontou para mim novamente. Dessa vez, olhei para ele diretamente com cara feia. Ele tentou disfarçar, fingindo que ia fazer uma ligação. Eu fiquei com gosto amargo na boca.

Quando o trem parou na estação seguinte, falei para minha mãe para mudarmos de vagão. Meu corpo era um misto de raiva, medo e desconfiança. Minha vontade era gritar e tomar o celular da mão daquele cara, mas como não tinha provas da primeira foto e impedi certamente a segunda, achei melhor trocar de lugar do que aguentar a viagem inteira naquela tensão.

Mais cedo, toda feliz de estar em Paestum, Itália

O pior é que não tinha sido o primeiro caso desses curiosos paparazzis no mesmo dia. Mais cedo, quando visitávamos uma igreja, reparei um senhor asiático apontando uma lente enorme para mim. Pouco tempo depois, um outro, provavelmente do mesmo grupo, acenou para mim, tirou uma foto e ainda sorriu, como agradecendo depois pela foto que eu não autorizei e fiz cara fechada.

A verdade é que desde que cheguei na Itália, há uns 10 dias, tenho ficado cada vez mais incomodada com o assédio exagerado. Estranhos me encaram sem pudor na rua, gritam coisas que às vezes eu entendo, às vezes não. Já fui pedida em casamento, já questionaram minha idade sem propósito, já falaram coisas obscenas. Não me dá vontade de entrar em alguns lugares, como por exemplo me sentar para tomar uma cerveja sozinha num bar. Me parece impensável, a não ser que eu queira passar raiva.

Uma pessoa lendo isso pode achar bobagem da minha parte, que não é nada agressivo, não é nada ameaçador demais. Mas a questão do assédio na rua e – por que tantas mulheres reclamam dele – é exatamente por parecer inofensivo, mas no final do dia você está esgotada e se perguntando se tem alguma coisa errada com você.

Numa viagem isso é ainda pior, porque você não sabe bem como reagir com as culturas alheias. Eu me pego de cara fechada para qualquer pessoa e na defensiva quando qualquer homem fala comigo com sorrisinho diferente, fico paranóica porque nunca se sabe quando um sorriso simpático da brasileira aqui será interpretado como abertura para avanços indesejados. 

Eu, no dia dessas fotos aí, saí de casa com um batom rosa novo, toda feliz. Em certo momento do dia, me peguei tirando o batom com o punho da blusa, um gesto quase inconsciente para parar de chamar atenção, como se a culpa fosse minha pela falta de educação alheia. Assim que me dei conta, passei o batom de novo! 

Não vou tirar mais o batom por conta de gente mal educada

Esse tipo de assédio acontece em qualquer lugar do mundo, uns mais e uns menos. Já escrevemos vários textos sobre o assunto e vamos continuar reclamando, porque isso tem que acabar. Assim, resolvi escrever este texto em parte para desabafar a minha raiva e em parte porque eu acho que nenhum homem tem a dimensão do que é passar por isso de verdade. Sentir medo, raiva e culpa simplesmente por existir e sair na rua. No Brasil, temos a campanha Chega de Fiu Fiu, que é ótima.

Então, fica a dica: não é elogio, não é agradável. Na Itália, no Brasil, na Índia, no inferno. Chega!

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Luiza Antunes

Luiza Antunes é jornalista e escritora de viagens. É autora de mais de 800 artigos e reportagens sobre Viagem e Turismo. Estudou sobre Turismo Sustentável num Mestrado em Inovação Social em Portugal Atualmente mora na Inglaterra, quando não está viajando. Já teve casa nos Estados Unidos, Índia, Portugal e Alemanha, e já visitou mais de 50 países pelo mundo afora. Siga minhas viagens em @afluiza no Instagram.

Ver Comentários

  • Olá, entendo sua indignação! Aconteceu o mesmo comigo em uma viagem para o Rio de Janeiro... Estava de short e biquini e uma blusa transparente voltando de Ipanema para o hostel, com minha tia, ao entardecer. Foi horrível, um monte de cara tirando gosto, chegou ao ponto de dois caras bêbados me cercarem e não deixarem eu passar, fiquei com tanta raiva, na hora eu só queria enfrentá-los, mas minha tia não deixou, atravessamos a rua.. e coloquei outra blusa.. Fiquei indignada! Tenho que andar "descente" para não sofrer assédio sexual... Isso me deixou muito frustrada!

  • Pois é, fico pensando em como lidar quando o machismo é tão incrustado em algumas culturas...quando estava em Lisboa, o assédio ultrapassou os limites e fui agredida fisicamente, no meio da rua. eu e uma amiga. De noite, voltando do Bairro Alto. Lembro de como senti um misto de coisas: culpa, raiva, impotência...e isso ainda é "pouco" comparado ao que acontece a tantas outras mulheres por esse mundo. Mas definitivamente, podendo compartilhar algumas histórias e experiências, acho que podemos nos fortalecer nessa luta!

  • Estive na Índia em janeiro e vivi muito isso, praticamente em todos os lugares que fui. Tentativa de fotos era o tempo todo, alguns ainda pediam. Os olhares eram nojentos,reagia xingando e parecia que se assustavam com a minha reação. Mas ainda assim consegui aproveitar a viagem!

  • Na Itália aconteceu comigo no Palatino. Quando entrei no museu o seguranca ficou me olhando e me seguindo, perguntando se eu precisava de ajuda. Achei estranho pq a mesma abordagem não aconteceu a outras pessoas. Respondi que não e continuei. Daí reparei que quando subi de piso ele também subiu. Quando saí do museu para dar uma volta pelo lugar e estava retornando o cara estava lá na grade esperando e me chamando. Perguntou q língua eu falava e do nada disse que estava apaixonado por mim e pediu o Facebook. Cortei na hora e saí.

    • Credo!

      Depois você vai lá e reclama do cara para o chef ou algo assim e ainda vem gente dizer que estava exagerando.

  • Passo por isso no Brasil, em qualquer cidade. Quando estive em Portugal na minha Lua de Mel, em todos os momentos que estava acompanhada do meu marido não houve assédio, mas bastou ele dar uns passos a frente ou atrás para um olhar mais curioso, mas ainda assim nada comparado com o Brasil. Não sofri como sofro aqui. E a culpa do assédio é sempre nossa né? Triste isso de nós mulheres termos a necessidade de expor nossos compromissos amorosos para sermos respeitadas na sociedade. Ou ainda pior, sermos obrigadas a tirar o nosso batom, aumentar o tamanho da nossa saia e fechar nossos decotes.

    • Oi Nana,

      Obrigada por comentar. De fato, sempre sofri com isso no Brasil. Mas quis fazer esse post para deixar bem claro que rola em qualquer lugar do mundo. É muito triste mesmo, mas seguimos lutando para acabar com isso, ne?

  • Oi!

    Esse tipo de coisa também me deixa com muita raiva! Principamente, quando me vejo podando a mim mesma (como o que vc disse em tirar o batom, por exemplo) pela babaquice alheia que poderia passar... É difícil desapegar já que a sociedade nos ensina a ser comportadas e, claro que não poderia faltar, "recatada do lar", mas sempre tento ao máximo!

    Na última viagem que fiz à Europa, por exemplo, estava a fazer um passeio em uma montanha em pleno verão europeu - 40ºC! - grande parte dos homens super confortáveis e sem camisa, e eu lá de camisa, short e bikini por baixo, doida para tirar a blusa... Até q liguei o f*-se e tirei! Yey! Claro que muita gente olhava com aquela cara de julgamento, inclusive mulheres, mas prefiria acreditar que era inveja, haha.

    Se não fizermos nada - como mudar o comportamento, mostrar aos pequenos essa infeliz verdade e ensina-los a fazer diferente, escrever posts como vc o fez, externalizar esses incômodos da forma como preferir - esse tipo de babaquisse oriunda de nossa cultura machista perdurará...

    • Oi Gabi,

      Isso dos homens sem camisa enquanto a gente está lá morrendo derretida sempre me irrita!
      mas é isso, temos que lugar para mudar o comportamento e não aceitar caladas essas loucuras que nos impõem.

      bjss

  • Realmente nós homens não temos a dimensão disso..
    Inclusive quando entrei aqui para ler imaginei que fosse sobre vendedores, ambulantes e outros tipos que nos abordam em viagens..
    Bem interessante o texto, e que isso melhore em todo lugar.

  • Oi flores. Vocês que viajam muito já perceberam que as fotografias tiradas sem permissão são comuns. Uma sugestão:Se notarem que extrapolam a normalidade, tipo direcionadas para parte do corpo, não quedem silentes. Fotografem a pessoa de modo que ela veja e procurem um policial. Se for nos USA acredito que ele será detido. No mais, a raça humana é curiosa. Ainda bem. Beijinhos

  • Eu acho que tem muitos otários que deveriam ficar em frente uma loja assediando manequim.
    Demoram entender que as mulheres são e sempre serão uma beleza e um espetáculo natural a ser"admirado" mas como uma propriedade alheia, não pode ser invadida.
    Deus condena o homem burro por opção e orienta o por instinto.
    A mulher está coberta de razão nesses casos.

  • Voces ja estiveram na India entao nao existe nada pior do que o assedio daqui, acredito eu. Tem hora que da vontade sair correndo, ou entao chegar na voadora em certas pessoas. Curiosidade e' uma coisa, falta de respeito e nocao e' outra bastante diferente.
    Conviver e estar numa cultura diferente te faz mais compreensivo e ate' mais apto a relevar certas situacoes, mas tem hora que nao da pra segurar, eu vou atras do pessoal e faco apagar a foto! hahahaha Se nao aprendem por bem, aprenderao por mal rsrsrs

    • Realmente na Índia é muito ruim o assédio. Mas no fim das contas, tem em qualquer canto do mundo, mais ou menos. E a vontade de atacar os sujeitos nunca passa!

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Luiza Antunes

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