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Medo e assédio no Grand Bazaar de Istambul

Eu nem ia comprar nada. Em primeiro lugar, porque eu já tenho uma coleção de lenços coloridos no meu armário e sempre uso os mesmos. Em segundo lugar, porque eu não tinha dinheiro para esbanjar no superfaturado Grand Bazaar de Istambul. Eu nem ia comprar nada, mas eu gosto de mercados. Gosto de caminhar sentindo o cheiro dos temperos ou da comida local sendo preparada nas lojas apertadas, de comer de pé no balcão enquanto vejo o movimento ao redor. Gosto de passar entre as peças de artesanato tradicional sendo expostos e imaginar como elas ficariam na minha casa, mesmo eu não tendo casa, estante, paredes suficientes ou espaço na mala para levar tudo o que me chama a atenção. E foi por isso, só para olhar o que estava exposto, que eu me aproximei daquela pequena loja de lenços.

Mal toquei um dos tecidos coloridos, um dos três vendedores começou a negociação. Eu já estava acostumada com a cultura turca do comércio. Havia passado os últimos três dias percorrendo, com um amigo, lojas de tempero, tapetes e antiguidades nas ruas de Sultanahmet. Era um ritual. Demonstrávamos interesse em algo, o vendedor começava uma conversa. Nos convidava para um chá, perguntava de nossas vidas. Mentíamos que éramos casados há três anos, meu amigo dizia como aquele tapete ia ficar bonito na sala da minha mãe. Eu lhe respondia que ele já sabia como ela era exigente com decoração e que talvez não combinasse com os quadros, que era melhor levarmos algo mais simples que assim teríamos certeza de acertar no presente. Tentamos ir ao mercado juntos no dia anterior, mas era domingo e estava fechado. Naquele dia, eu estava sozinha.

O vendedor começou sua venda habitual, quase ensaiada. “Olha esse, que bonito! É seda pura!”. “Para você, acho que essa cor ficaria bem”. “Vem ver essas peças que tenho dentro da loja, são belas!”. Eu entrei. Ele tira alguns lenços das prateleiras, milhares de cores. Coloco um no pescoço para ver como fica. “Você está colocando errado, desse jeito que fica mais bonito”. Ele arruma o lenço em meu pescoço. A proximidade inesperada me colocou em alerta. “Tenho um espelho”, ele disse, fechando a porta da loja de forma que eu pudesse olhar o espelho escondido de trás dela, mas também deixando-nos sozinhos em um pequeno depósito em um mercado grande e barulhento.

A sensação de perigo que vinha crescendo desde de a súbita aproximação começou a apoderar-se de mim. Coração acelerado, tirei o lenço do pescoço e o coloquei sobre a mesa. “Obrigada, mas hoje não vou levar nada”, disse, girando-me em direção à porta. “Nem mesmo esse que fica tão bonito em você?”, ele aponta para outro lenço que eu havia olhado minutos antes. “Não, preciso ir, estou atrasada.” Eu agarro a maçaneta, mas o vendedor se aproxima mais e segura minha mão. “Você é muito bonita. Estou apaixonado.”

Acho que a última vez que eu experimentei o pânico foi quando eu cai de uma cachoeira aos 19 anos e quase me afoguei. Quase 10 anos se passaram até eu conhecer a sensação de ser completamente preenchida pelo medo outra vez. Cada pensamento, respiração, cada movimento involuntário do meu corpo tinham, naquele momento, um único objetivo: sair dali ilesa. Meus sentidos passaram a funcionar de outra forma, como se estivessem amplificados. Quando me lembro desse momento, era como se eu tivesse entrado em um estado alterado de consciência no qual tudo em mim gritava “fuga!”. Ao mesmo tempo, tentava manter a naturalidade para que ele não percebesse meu medo.

“É sério”, ele continuou, ainda segurando minha mão. “Estou deslumbrado por sua beleza. De onde você é?”. “Argentina”, menti, lembrando-me naquele momento que, em alguns lugares, o estereótipo de mulher brasileira é um tanto mal interpretado. “Eu realmente preciso ir agora”, puxei minha mão e abri a porta, tudo ao mesmo tempo. Acho que demorou uns cinco minutos até que meu corpo voltasse ao normal. No meio tempo, tropecei de corredor em corredor tentando afastar-me ao máximo daquela loja. Logo me dei conta de que não sabia onde estava, nem para que lado era a saída.

Recuperada, recusei-me a deixar que aquilo acabasse com meu dia. Continuei caminhando pelo mercado e falando com as pessoas. Tomei um chá, comi um doce turco. Evitei milimetricamente aquele corredor. O senhor da loja em nenhum momento usou força ou agressividade contra mim. Eu não sei se ele ia passar das cantadas e estou feliz de não ter ficado para descobrir.

A violência de seu gesto estava em transformar uma negociação casual em um galanteio inapropriado. Estava na invasão do meu espaço pessoal, na aproximação física não autorizada. Estava em fazer tudo isso logo após colocar-me em uma situação vulnerável, sozinha com ele em sua loja. Em fazer isso quando minhas opções de simplesmente virar as costas e ir embora eram limitadas. E, acima de tudo, em acreditar que qualquer mulher sem a companhia de um homem é um objeto disponível para seus desejos. Quando se é mulher, a ameaça vem muitas vezes disfarçada de elogio.

Leia também: O inferno que é o assédio na rua em qualquer lugar do mundo

Sobre o medo de viajar e mulheres sozinhas

Faz um ano que eu estive em Istambul. Eu demorei muito tempo para escrever sobre isso aqui porque eu não queria reforçar o estigma já tão associado ao mundo Islâmico. Daquela vez, eu estava na Turquia. A Luíza foi seguida na Grécia. Já ouvi relatos de todas as partes. Passei por inúmeras situações de assédio dentro de um raio 100 km da minha casa, em Belo Horizonte. Todas nós passamos, em qualquer lugar, a qualquer hora. A violência contra a mulher não tem cor ou religião. Tem gênero.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones, no Youtube e em inglês no Yes, Summer!. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

Ver Comentários

  • Toda vez que vejo relatos assim de mulheres me dá uma sensação estranha no estômago. Mas me reforça em mudar o que há de errado em mim e naqueles que me rodeiam.

    Fico feliz por isso não ter te impedido de contar sempre suas ótimas histórias.

    • Thiago, obrigada por comentar. Fico feliz que você tenha empatia para se colocar no nosso lugar.

      Abraços

  • Acho importante ressaltar que a violência contra a mulher não tem cor ou religião, ou nacionalidade.
    Eu tive ótimas experiências no Grand Bazaar, foi só risada! Fui muitas vezes acompanhada, mas também fui sozinha e não tive problemas. Sinto muito por sua experiência.

    • Claro Lígia, eu fiz questão de ressaltar isso e foi por isso que eu demorei tanto para escrever esse texto. Cada experiência é única, não é porque eu tive problemas que todas vão ter.

      Abraços

  • "A violência contra a mulher não tem cor ou religião. Tem gênero."

    Triste realidade. Me lembrou da primeira vez que fui à Buenos Aires e como me senti desprotegida e com o sentido de alerta o tempo inteiro. Era inverno, eu usava várias camadas de roupas e ainda assim ouvia cantadas o tempo inteiro. Saí de lá com o pensamento de nunca mais voltar, e só voltei quando fui à um Congresso com outras três mulheres.

    :(

    • Ana, Eu vivi em Buenos Aires e tive boas experiências lá, fico triste de ver que a cidade te tratou mal e também a outras mulheres. Espero que volte outras vezes e tenha boas experiências....

      Abraços

    • O Brasil também tem taxas altíssimas de estupro, assédio e violência contra a mulher, Dalva. O buraco é mais embaixo.

  • Sim... passei pelo mesmo pânico, sendo abordada na Real Maestranzza e seguindo pela margem do Guadalquivir, em Sevilla, pelo mesmo homem tentando me aliciar para a fronteira do Marrocos insistemente, de diversas maneiras, ate indo buscar num balcão um tinto de verano. (E se pusesse um boa-noite-cinderela) Isso td ao ar livre, publicamente. Mas o assédio, a invasão, a insistência, a dificuldade em se desvencilhar e a vulnerabilidade de uma mulher sozinha são tamanhas que as sensações são as que relatou. É mesmo um medo incomparável. Fugi entrando na Catedral e o despistando, como voce.

    • Ana, nossa, sua experiência também foi bem tensa. Acho que não tem nada pior que sertir-nos vulneráveis.

      Abraços

  • Exatamente. Tem gênero. Quando eu falei no snapchat sobre ser assediada enquanto corria nas ruas de Londres, me perguntaram: "nossa, em Londres tem isso também?". Sim, tem em todo mundo. As pessoas não entendem. Não é geográfico. Fica bem, e se quiser falar sobre isso, adoraria fazer um hangout com vcs duas no meu canal. O que acham? beijos, Helô

    • Heloisa, desculpa demorar a responder. Estava de "férias"do blog. rs

      A gente topa demais fazer um hangout sobre o tema. Vou te enviar uma mensagem sobre isso.

      Abraços!

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Natália Becattini

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