Não esqueça Mariana: dois anos depois, a luta continua

Em 5 de novembro de 2015, a ganância venceu, a sirene não tocou e a barragem do Fundão, operada pela Samarco Mineração, rompeu e arrastou, morro abaixo e com mais de 50 milhões de metros cúbicos de lama, as vidas de 19 pessoas e as histórias e o modo de vida de outros milhares. Ao todo, do interior de MG ao litoral capixaba, 39 cidades foram afetadas pelo mar de lama.

Em 5 de dezembro de 2015, quando a chamada “Tragédia de Mariana” completava um mês, eu fui até lá. Com a jornalista e amiga Nina Neves, segui o rastro de lama da barragem até o encontro do rio Doce com o mar, e testemunhei muitas coisas.

Fotografei o que sobrou de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo (os distritos mais atingidos pela lama), e conversamos com vários de seus moradores. Também fizemos registros e reportagens com os pescadores e ribeirinhos que perderam o trabalho e a chance de passar o ofício às próximas gerações. Com moradores de Governador Valadares que sofriam com a falta de água, com os índios Krenak — que perderiam rituais, festas e outras partes de sua cultura com a contaminação do rio — e com moradores de Regência, outrora um pico de surfe.

Daqui a alguns dias, o maior crime socioambiental da história do Brasil completará dois anos. E, infelizmente, há muito a ser dito sobre o que tem — e principalmente — o que não tem sido feito de lá para cá.

Sob os pontos de vista humano, ambiental e econômico, a Samarco — junto com suas donas Vale e BHP Billiton — tem se mostrado disposta a arrastar as medidas de reparação por meio de longas batalhas judiciais ou com o uso do jogo político.

Vários atingidos têm dificuldade para serem reconhecidos como tais. O processo das indenizações se arrasta e, de acordo com as vítimas, advogados tentam estabelecer acordos prejudiciais longe da supervisão do Ministério Público. Só 1% das multas emitidas por entidades como o Ibama foram pagas. E, enquanto o MPF calculou os prejuízos em R$ 155 bilhões, a Fundação Renova, criada com a anuência dos governos de MG, ES e Federal para gerenciar os processos de compensação, terá um orçamento oito vezes menor. Cerca de R$ 20 bilhões para cuidar da reparação dos danos, despoluição e limpeza do meio ambiente ao longo de 20 anos. Uma pechincha.

O balanço e o que restou da escola

E, para além desse lamaçal ético e moral, ainda há a questão da lama de fato, que continua a escorrer rio abaixo.

Para conter os resíduos de mineração que ainda estão na região de Mariana, inclusive, a Samarco conseguiu que o Governo do Estado de MG a autorizasse a construir um dique em parte do que sobrou de Bento Rodrigues. Concluída no início desse ano, a obra do dique S4 alagou cerca de ⅓ do povoado e, de certo modo, concretiza um desejo antigo da Samarco: antes de causar o “acidente”, de acordo com documentos obtidos pelo Ministério Público, a empresa já tinha planos de construir uma nova represa ali.

Os moradores foram contra na época, quando se recusaram a vender, e são contra nos dias de hoje. Não é à toa: a nova barragem — que já submergiu vestígios arqueológicos dos séculos 18 e 19 — ameaça também as ruínas deixadas pela lama, que muitos gostariam de ver transformadas em um memorial.

Seu José Barbosa e Dona Maria das Dores, respectivamente moradores de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo

Para alguns, pode parecer estranho que as vítimas de uma tragédia com essas proporções desejem transformar um espaço onde viveram tanta dor em um local tombado (o projeto está parado na Secretaria de Cultura de Mariana desde maio de 2016), preparado para visitação.

Mas para quem acompanha a movimentação dos atingidos por meio de iniciativas como o excelente jornal comunitário “A Sirene”, esse apreço pelo lugar de onde eles vêm não é surpresa alguma. Os ex-moradores voltam para Bento e Paracatu sempre que podem, e chegaram a celebrar missas e procissões na comunidade.

“Depois de tudo o que passamos, ainda temos que sair às ruas e fazer manifestação para sermos ouvidos em nossas reivindicações básicas?

Vivemos contrariados pelo modo de vida que levamos aqui na cidade. Somos pessoas humildes, que viviam da construção civil, das plantações, dos animais, da apicultura… Tínhamos uma vida muito simples. Não enfrentávamos os problemas psicológicos que, hoje, fazem parte da rotina de muitos de nós.

Em casa, na roça, no mato, nós tomávamos nossa cerveja nos bares das comunidades. Quem bebia mais que devia era sempre cuidado por alguém. Jogávamos bola na praça, juntávamos a galera. Éramos livres. Éramos crianças de muitas idades.

Até que a empresa vem, joga lama em nossa vida, em nossa história, em nosso patrimônio e em nossa cultura. Duro ter que explicar, pra quem não entende, o que a gente perdeu. Esse pessoal que negocia conosco vive outra realidade e acha que o mundo todo tem que enxergar a vida como eles.

Não.

Nossa felicidade é outra. E da nossa dor e das nossas perdas, é a gente quem sabe.”

Trecho de editorial de “A Sirene” (agosto de 2017)

Sei que o tema de transformar lugares trágicos em pontos de visitação é polêmico (seria muito triste ver terceiros lucrando com a visitação ou turistas se comportando de forma desrespeitosa), mas acho que abrir locais como senzalas, campos de concentração, o World Trade Center e outros à visitação é, como o Rafa disse nesse texto: uma forma de não deixar as pessoas esquecerem as atrocidades que vivemos. Ao varrer nossas mazelas para debaixo do tapete, estamos colaborando com os réus, não com as vítimas.

As fotografias, como essas que fiz e estão distribuídas ao longo do texto, têm um papel importante na preservação da memória.

Mas preservar o local para que os moradores voltem sempre que quiserem e tenham a oportunidade de contar suas histórias a visitantes dispostos a ouvi-los é algo que fotografia nenhuma é capaz de entregar.

É algo capaz de permitir que, de alguma maneira, Bento continue a existir.

Não esqueceremos.

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Ismael dos Anjos

Ismael dos Anjos é mineiro, jornalista e fotógrafo. Acredita que uma boa história, não importa o formato escolhido, tem o poder de fomentar diálogos, humanizar, provocar empatia, educar, inspirar e fazer das pessoas protagonistas de suas próprias narrativas.

Ver Comentários

  • Ola Murilo, demorei abrir o texto pois voltam sentimentos de tristeza e compaixão por mais humanos agredidos. Todavia, bom ver a dedicação ao registro genuíno de algumas nuanças da tragédia em Mariana.
    Muito grata

  • Tentamos chegar a Bento no dia 15 de outubro fizemos uma caminhada de santa luzia e demos de cara com vigilantes armados na estada de bento. Assim como na cidade percebemos uma resistência das pessoas em que alguém vá até bento rodrigues. conversamos com um motorista da região que mostrou onde será a nova bento assim como disse que algumas pessoas já receberam indenização. Observamos que existe um certo medo dos moradores em falar mal da samarco. Segue o caminho que fizemos https://www.strava.com/activities/1238774543

    • Obrigado pelo relato, Antônio!
      Existe esse receio sim, e que pena que os réus têm conseguido acordos extrajudiciais (já que o processo via MP ainda não chegou ao fim). É uma balança desproporcional empresas de grande porte terem a chance de negociar, assim, com quem perdeu tudo!

  • Ismael meus sinceros parabéns.

    Há cerca de um mês comentei com um grande amigo que mora em Ouro Preto, sobre a tragédia de Mariana. Procurei saber se ele sabia de alguma melhora na situação e a resposta dele foi a seguinte: Ígor ninguém está mais preocupado e não tem mídia que fale sobre o assunto. Você acha que vai haver alguma melhora pra quem perdeu tudo?

    Muito triste saber tudo que esse povo passou e ter todos seus direitos negados.

    Grande abraço!

    • Obrigado, Ígor.

      Bom trazer esse depoimento do seu amigo, pois ele traz um ponto importante com o qual concordo: esse silêncio só ajuda a quem cometeu o crime. Pra quem se indignou com esse absurdo, como nós, é preciso fazer barulho. Sempre!

      Obrigado pelo comentário, viu? Bom saber que trazer esse assunto para cá fez sentido pra algumas pessoas :)

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Publicado por
Ismael dos Anjos
Tags: Estrada Real

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