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Atlas: Berlim, Alemanha, Brasil

A importância de memoriais para a História

“Muita gente foi contra esse memorial. Falavam que seria um gasto sem motivo”, explicou a nossa guia. Estávamos no Memorial aos Judeus Mortos da Europa, que ocupa uma área de quase dois campos de futebol, bem no centro de Berlim. Inaugurado em 2005, o memorial do holocausto custou mais de 80 milhões de reais.

“Alguns diziam que o país devia seguir em frente e se esquecer do passado triste. Outros defendiam que esse dinheiro fosse investido em financiar o transporte público gratuito até Sachsenhausen, o antigo campo de concentração que fica perto de Berlim. Eu acho que o governo fez um bom trabalho aqui. Quem visita Sachsenhausen já está disposto a pensar no passado. Com o memorial todos são forçados a se lembrar disso, afinal ele está no centro da cidade”, concluiu ela.

Leia mais: Sachsenhausen, campo de concentração em Berlim

Campo de Concentração de Dachau, em Munique

A Berlim da Segunda Guerra e do Terceiro Reich

Memorial do Holocausto, Berlim

Memorial aos Judeus Mortos da Europa, Berlim

Por falar em Sachsenhausen, os antigos campos de concentração dos nazistas são um dos passeios mais emocionantes que um turista pode fazer. Quando estávamos lá, notamos que duas palavras costumam marcar os monumentos criados nesses lugares: “Nunca Mais”. Depois de décadas de silêncio sobre o nazismo, a Alemanha resolveu que a melhor forma de garantir que tais atrocidades nunca mais se repitam é falando sobre elas. “Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”, disse o filósofo George Santayana. Ele não poderia estar mais certo.

É por isso que Berlim tem tantos monumentos que lembram os horrores do nazismo. Horrores esses cometidos não apenas por um lunático poderoso – como Hitler é taxado por muitos – mas também por grande parte da população, que apoiava a campanha de ódio nazista ou então fechava os olhos para ela.

Nesse sentido, o Museu Judeu, hoje um dos passeios quase que obrigatórios de Berlim, tem muito a dizer. Numa das salas do prédio, o visitante caminha sobre peças de metal com o formato de rostos em sofrimento. A cada pisada do visitante, um grito da vítima simbólica. É impossível sair desse museu sem pensar na parcela de culpa que cada um de nós tem nessa história, mesmo quem não viveu naquela época. O preconceito e o ódio nascem devagar e muitas vezes não são notados imediatamente.

Para filhos, netos e bisnetos dessa geração, é muito complicado entender que seus antepassados não estavam exatamente escondendo judeus no porão. Apesar de alguns terem de fato feito isso, muitos apoiaram o regime e participaram da perseguição. Katrin Himmler, sobrinha de Heinrich Himmler, um dos maiores responsáveis pelo Holocausto, chegou até a escrever um livro sobre o assunto. Vale ler a entrevista dela para o The Guardian (em inglês) para perceber o choque que a atual geração sente ao lidar com o passado nazista de avôs e avós queridos.

Mas e o Brasil nessa história?

Esse não é um texto somente sobre a Alemanha, mas também sobre o Brasil. E sobre como encaramos os esqueletos em nosso armário. Se na Alemanha, o governo faz de tudo pra forçar a reflexão sobre os erros de gerações anteriores, nós ainda caminhamos timidamente nessa direção.

Um exemplo óbvio envolve nossa ditadura militar. Antes que protestem, uma observação: É claro que não estou dizendo que o regime responsável pela morte de milhões foi como nossa ditadura. Sim, Hitler foi muito pior do que qualquer de nossos ditadores. Mas nos dois casos direitos foram violados, pessoas foram torturadas e mortas e a liberdade foi suprimida –  a diferença está na intensidade com que essas coisas horríveis aconteceram. Converse com qualquer pessoa que tenha sido torturada durante a ditadura brasileira e tente não se emocionar.  O drama dessas pessoas é terrível e não deve ser esquecido.

Chegou 2014, mas os responsáveis por esses crimes não foram punidos. Apesar dos esforços das diversas Comissões da Verdade que se instalaram no Brasil, muitos deles nunca serão, incluindo os generais, todos já falecidos. Demoramos demais. Apesar disso, há uma necessidade urgente de refletirmos sobre o passado, de forma a evitar que tais fatos se repitam.

E repetir esse passado não é tão impossível assim. Vivemos num país onde muitos acham que aqueles que lutaram pela liberdade mereceram ser torturados. Repare: vivemos num país onde muitos acham que a tortura é aceitável. Está cheio de gente que acha que o grande erro dos militares foi ter torturado, enquanto deveriam ter matado mais. Para alguns, faltou aos militares a cruel eficiência de Hitler.  Vai dizer que você nunca ouviu a frase “as coisas eram melhores na ditadura”? Eu já, muitas vezes.

Exatamente por isso precisamos de museus, memoriais, monumentos, estátuas, enfim, tudo que possa estimular a reflexão e exponha as cicatrizes desse período. Caminhamos – e muito – nesse sentido nos últimos meses. No Rio, o antigo prédio do DOPS, o principal órgão repressor do regime, vai virar um museu para as vítimas. Em São Paulo, o Tribunal da Justiça Militar também será transformado num museu da ditadura, medida que não agradou a todos.

Tribunal de Justiça Militar

Tribunal da Justiça Militar, em São Paulo (Foto: Asdrubol, Wikimedia Commons)

Espaços de lazer e turismo têm o potencial de estimular a reflexão. Vale dizer que a criação de espaços assim não deve ser limitada somente ao período do regime militar. Embora existam museus para os absurdos da escravidão e do preconceito, nossas ações nesse sentido também são poucas e demoradas. Temos um dia da Consciência Negra, mas a data só entrou para o calendário oficial há ridículos 2 anos. É isso mesmo, o Brasil demorou mais de três séculos para determinar que o dia do assassinato de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, entrasse de forma oficial em nossos calendários. O Parque Memorial Quilombo dos Palmares, localizado em Alagoas, também demorou para virar realidade – foi implantado só em 2007.

Zumbi dos Palmares

Busto de Zumbi dos Palmares, em Brasília

No Brasil, o negro tem uma média salarial 36% menor do que o branco, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Esse mesmo país ainda está cheio de gente que não entende a necessidade de ações afirmativas e que acham que o preconceito racial não existe. Ou pior: gente que defende o direito de um dia de consciência branca e o direito de expressar o orgulho branco. E garante que isso não é preconceito. Ou, como dizem alguns brancos da África do Sul pós apartheid, que hoje existiria preconceito no sentido inverso.

Assim como há alemães que não querem pensar no nazismo, essas pessoas defendem que o Brasil siga em frente, se esquecendo do passado, afinal, o que já foi não volta mais. Falam em meritocracia, mas não perdem um minuto para pensar que brancos largam na frente após séculos de escravidão e preconceito. Falam  que a ditadura militar deixou saudades, mas se esquecem que é fácil estar contente com um governo que garante privilégios para as mesmas classes dominantes e não se preocupa com o resto. Desde que, claro, você seja parte dessa classe privilegiada. E são essas cicatrizes que precisam estar expostas em nossas praças e museus, lembrando-nos a todo o momento de sua existência.

O Brasil precisa mesmo seguir em frente. Só que não se segue em frente sem antes encarar o passado.

*Foto destacada: Rob Sinclair, Wikimedia Commons

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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9 comentários sobre o texto “A importância de memoriais para a História

  1. Eu sempre leito os textos de 360 meridianos. Mas este, com certeza foi o melhor de todos. Vi memoriais reflexivos em Montevidéu, sobre tempos de chumbo e no Brasil precisamos ter muitos. Precisamos reavivar a memória das novas gerações sobre aqueles que foram presos, torturados ou mortos porque lutaram pela liberdade. A democracia brasileira já sofreu muitos golpes e temos que avançar para que a ditadura nunca mais volte.

  2. Rafael, bem essa situação. As pessoas por aqui (Brasil) e me incluo nesse roll, tem memória curta, e isso serve para o que vivemos agora. Quando criança, ficava admirada com as aulas de historia, a primeira vez que vi em um livro didático algo que vivi (o impeachmant do Collor) fiquei admirada, pois eu estava fazendo parte daquele momento. Hoje parece que nos preocupamos muito com o futuro – não que não seja importante – e acabamos deixando os exemplos historicos que poderiam nortear nossa historia atual e nos fazer evoluir como pessoas e como cidadãos!

    Agora estão comemorando o cinquentenário do Golpe Militar e da instauração da ditadura no Brasil, vou acompanhar de perto, ver qual será a repercussão disso na população, é uma forma de relembrar quem teve pais e avós presentes nesse pedaço de história e até mesmo de atiçar a curiosidade e questioná-los sobre as impressões que tiveram daquela época. Temos uma chance, afinal, de poder melhorar nossa civilidade.

    Abraço!

  3. Ótimas tuas reflexões! Um pais que nega ou faz questão de esquecer as atrocidades pelas quais seu povo passou está fadado a repetir o erro ou a cometer as mesmas atrocidades, independente do quão moderno ou avançado culturalmente ele pense que é.

    O pais que faz questão de lembrar esses momentos mostra aos seus descendentes a importância que aqueles fatos tiveram para a história desse pais e o quanto é importante, senão fundamental, não repetir os mesmos erros, as mesmas atrocidades.

    Abraços

    1. Pois é, Nine. Quando estive na Alemanha, me assustei ao saber que foi só na década de 90 que eles começaram a discutir abertamente o mal causado pelo nazismo. Mas aí pensei que nós brasileiros também discutimos de forma tímida os erros do nosso país.

      Enfim, quem sabe com mais memória a gente não consegue evitar que esses erros e atrocidades se repitam.

      Abraço!

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