Quando o mochileiro começa a querer conforto

O clichê garante que viagens mudam pessoas, mas muitas vezes nos esquecemos de algo ainda mais óbvio: as viagens das pessoas também mudam com o passar do tempo. Tenho sentido isso lentamente, de 2009 pra cá. Se as primeiras andanças que fiz pelo mundo tinham uma cara mais mão de vaca, digo, econômica, as atuais prezam por um tipo de coisa que seria incompressível para meu eu do passado – conforto.

Não estou falando de luxo, veja bem, mas de subir um degrau (ou dois) em certas escolhas de viagem. Tipo a de 2012, na Índia, quando cheguei a me hospedar num hotel cuja diária custou míseros R$ 1,50. O valor é tão baixo que precisa ser repetido, por extenso: sim, um real e cinquenta centavos.

Desnecessário dizer que o tal hotel passava longe de ser bom, mas o pior mesmo era que não havia água, só gelo. Por conta do inverno, tudo estava congelado nos canos do prédio, que por isso mesmo nem estava aberto, mas topou receber hóspedes que não precisavam de certas comodidades. Tipo água encanada.

Rua de Manali, na Índia 

A Índia, por sinal, viu outras decisões do espírito de viajante ultra econômico que hoje exorcizei de mim. Fiquei em hotéis onde o banho era de balde; me hospedei em lugares onde nem o baldinho existia e precisou ser feito com uma garrafa pet. Dormi em quartos com marcas de sangue nas paredes e uma enorme quantidade de lixo na varanda; passei noites em hotéis que tinham vista para chiqueiros, literalmente. E note que nem vou falar dos hostels com mais de uma dezena de camas e pouquíssimos banheiros.

Numa região muito mais barata que o Brasil e onde, com um pouco de investimento, seria possível reservar hotéis de primeira linha, a preferência era por juntar as moedinhas e gastar o mínimo possível. Tá aqui esse comprovante de reserva que não me deixa mentir – mas note que o preço total é para duas diárias de dois quartos duplos. Ou seja, esse hotel de Kathmandu custou três dólares por dia para cada pessoa, com café da manhã. E olha, esse quarto até que era bom.

Só voltei à Ásia este ano, já em outro contexto. Um dos reflexos foi na hospedagem, agora escolhida cuidadosamente. Nessa viagem, procuramos por hotéis bem localizados e com um certo nível de conforto, refletido em itens que antes eu julgava serem de menor importância, como uma cama boa e travesseiros macios.

E foi também nessa última viagem de férias, para a China, que comecei a notar algo que meu eu de 2011 julgaria completamente insano – hoje acho que vale investir um pouco a mais para me hospedar num quarto com uma vista legal ou num hotel ou pousada com academia e piscina, por exemplo. Não que eu vá usar a academia, mas já estou na fase da vida que sempre finjo que vou.

A conclusão apressada seria econômica. E embora eu tenha passado longe de enriquecer nesse meio tempo, de fato meu salário subiu, aos pouquinhos, de 2011 pra cá. Afinal de contas, nas viagens do passado eu tinha acabado de sair da faculdade e estava em meu primeiro emprego.

Mas não é só isso. A verdade é que, naquele tempo, sempre que eu conseguia juntar uma quantidade de dinheiro que seria suficiente para viajar de forma confortável por 15 dias, a decisão óbvia era apertar o orçamento e esticar a viagem até onde desse. Dois meses na Europa com orçamento para duas semanas? Dá pra fazer. Viagem de 12 meses pelo mundo, com o dinheiro indicado para uma aventura de 40 dias pela América do Sul? Fácil.

Veneza 

Eu tinha tempo e uma vontade gigantesca de não parar de viajar, então grana era um desafio menor, principalmente se eu diluísse o maior gasto, a passagem aérea, por viagens mais longas. Hoje, mesmo que a quantidade de dinheiro disponível nem seja tão maior assim, eu não me vejo mais passando longos períodos fora de casa. Ta aí outra coisa que mudou: passei a preferir viagens de até quinze dias. E, que meu eu do passado não me escute, mas em geral eu chego ao décimo quarto dia doido para voltar pra casa.

Doido para deitar no meu sofá, molhar minhas plantas e levar meu cachorro pra passear. Doido para rever minha família, namorada, comer as comidas que mais gosto e tomar uma cerveja com os amigos. Hoje, continuo completamente fascinado com a ideia de viajar, e faço isso sempre que possível, mas também adoro a sensação de voltar pra casa. Vai ver foram os 30 que chegaram (e já ficaram pra trás), vai ver foi a constatação de que tenho raízes e me orgulho delas, não importa. Mas o fato é que, ao preferir passar menos tempo na estrada, a consequência foi que sobrou dinheiro para investir melhor nesse tempo.

E não só em hotéis. Há alguns anos, entre mochilões diversos e dois intercâmbios, outro item quase sempre sacrificado era a alimentação. Eu posso assegurar que o McDonald’s tem o mesmo padrão, seja isso bom ou ruim, em vários cantos do mundo, porque essa era a minha comida de dia a dia. Ao contrário do que ocorre no Brasil, em muitos países a rede de fast food é a opção mais barata que o bolso de um viajante mão de vaca consegue pagar. E quando não é, provável que seja uma opção parecida, mas local.

Corta pra 2018, quando comer virou a principal parte das minhas viagens. Enquanto a pança agradece (e cresce), viajo deixando tempo e um pouquinho de dinheiro para conhecer restaurantes, bares, mercados públicos e tendinhas de rua. Porque não era só o orçamento baixo que, lá trás, sempre me levava para os McDonald’s da vida, mas também uma priorização do tempo. Naquela época eu não entendia que comer bem podia ser uma parte do roteiro – pelo contrário, em geral almoço e jantar apareciam como compromissos que precisavam ser cumpridos rapidamente para que o próximo ponto turístico pudesse ser visitado. Uma correria sem fim que foi substituída por uma comilança sem fim. Ainda bem.

Parte disso pode ser sentida aqui no 360. Eu simplesmente não sei como responder quando outros viajantes me pedem indicações de bons restaurantes nos lugares que visitei no modo econômico – e confesso que há pouco tempo nem entendia a insistência na pergunta. “É só achar um restaurante qualquer”, pensava meu eu de 2012. Hoje, não escrevo texto com roteiro por cidades mundo afora sem três ou quatro opções para comer. Mas o pior é a constatação de que passeios que deixei de fazer porque eram, na minha memória, caríssimos, na realidade custavam tipo 15 reais.

Tram de Hong Kong – em 2012 escrevi que esse passeio era caríssimo; em 2018 descobri que custa R$ 22 (Foto: Leungchopan, Shutterstock.com)

As mudanças, claro, não param por aí. E muitas delas foram consequência do espírito do tempo. Os aplicativos de mobilidade facilitaram o deslocamento pelas cidades, principalmente quando você não viaja sozinho, e os smartphones simplificaram decisões e maximizaram escolhas. Se em 2011 eu cheguei a andar de hotel em hotel, de albergue em albergue, até achar o mais barato possível, hoje bastam três cliques para descobrir as opções mais econômicas em cada cidade.

Mudou o mundo, mudei eu. Ainda me considero um mochileiro, embora o mochilão tenha saído do armário pela última vez em 2014. Foi substituído por mochilas menores e por malas de rodinhas, mas aí entra também outra explicação: me acostumei a viajar com tão menos coisas que nem conseguiria encher um mochilão.

Pode ser que os próximos anos alterem tudo ainda mais – apostaria nisso, inclusive – e gosto de pensar que um dia farei uma longa viagem novamente, de meses, mas a verdade é que o estilo das minhas viagens mudou profundamente, talvez porque elas, junto com mais um monte de coisas, me modificaram. Não é que aquele clichê estava certo?

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Nossa, me identifiquei demais nesse texto. Antes qqr real poupado valia, agora a lista de economias que não valem o custo beneficio só cresce. Nisso inclui: ônibus pinga pinga ou viagens longas só de trens regionais, pegar voo às 6h ou 23h pelo preço em aeroporto de low cost, deixar de comer a comida local pelo preço, carregar malas em situações esdrúxulas pra não pagar taxi, ficar super longe do centro pq o hotel é em conta...

  • Oi Rafa, como se faz prá viajar um ano com o dinheiro de uma viagem de 40 dias pela América do Sul?
    O seu texto encaixa comigo também e já passei um bocadão dos trinta... imagina...se pudesse só ficava em hotel de luxo e nenhum pudor em assumir isso. Bye!

    • Tem que apertar muitoooo mesmo o orçamento, Ana. Mas não faço mais essas, não.

      Abraço e obrigado pelo comentário.

  • Engraçado que eu tava pensando justo hoje em como mudei e meio que desmudei, hahha. Quando comecei a viajar só, em 2009, também comia a coisa mais barata que houvesse (menos Mc Donald's, porque nunca curti hehe). Ficava em quartos pra 20 pessoas numa boa, achava 4 euros caríssimo pra um caderno lindo que seria meu único souvenir da viagem, dormia em aeroporto pra economizar diária, entre outros perrengues que sei que você conhece bem. Com o tempo, passei a alargar o orçamento (por não ser mais estudante e principalmente pela idade mesmo) e "investir" em quartos privativos e restaurantes legais de vez em quando. Mas não é que nessa última viagem percebi que já não tou mais dando tanto valor à gastronomia e que quartos coletivos (por períodos curtos :b) não me incomodam tanto se significam que posso esticar a viagem? Ao mesmo tempo em que aumentei um pouco o nível de exigência (ou intolerância quanto a desconforto), passei a dar menos valor a certas coisas e percebi que tava incluindo algumas atrações e comilanças no roteiro meio que no automático, e não porque aquilo me fazia feliz. Realmente as prioridades tão constantemente se ajustando e temos que estar sempre atentos ao que nosso eu atual tá dizendo, né? :) Boas viagens, Rafa! (com umas idas à academia, quem sabe? :b)

    • Eu acho que tem a ver com nossa disposição de viajar por períodos mais longos ou mais curtos, mais do que com a idade. Hoje eu estou numa fase de viajar só de férias, uma vez por ano, ou então aquelas viagens curtas em feriados. Então, como tenho tempo limitado para viajar, estou disposto a gastar mais. Pode ser que um dia eu resolva fazer viagens longas novamente. Aí, como dinheiro não nasce em árvore, a tendência é ligar o modo mão de vaca de novo. Só espero que não no mesmo nível. hehehe

      • Realmente, com certeza uma viagem de férias tende a permitir mais gastos do que uma vida na estrada. Mas acho um dos fatores que influenciam nessa disposição pra viajar por mais tempo (com grana limitada) é o nível de conforto mínimo que nosso "eu" atual exige, né? :P Um abraço!

  • kkkkkk me senti totalmente representada!
    Continuo sendo econômica? Sim. Mas meu nível de tolerância com falta de conforto tem aumentado com o tempo. Acho que é a ordem natural das coisas

  • Nossa me identifiquei MUITO!
    Fiquei em um hostel na minha última viagem ao Chile mês passado e bati o martelo que seria a última vez, acho que são meus 30 chegando... ou o costume de Airbnb, só sei que não da mais hehe seu texto me definiu!

    Abraço

    • Haha

      Meu último quarto coletivo de hostel foi durante as Olimpíadas, no Rio. Me aposentei ali!

      Abraço, Jessica.

  • Adorei o texto e me identifiquei DEMAIS! hahaha OS 30 anos e as viagens, de fato, mudam a gente ;)

  • Seus textos são maravilhosos.
    Me identifico bastante nas opiniões apesar de não ter sua vivência de viagens.
    Mesmo tendo muito medo de avião, amo viajar e esse medo nunca foi empecilho.Pena que não tenho bala na agulha para viajar todas as vezes que desejo.
    Então me programo e me organizo com muita antecedência pra ir. Não tenho desejo em lugares luxuosos, minhas viagens são econômicas,mas ter uma cama confortável, banheiro limpo e poder apreciar a natureza, cultura e culinária local ahhhhhh é isso que me move.
    Meu sonho e projeto atual é viajar pra Itália ano que vem com mais 3 amigas. Já estou pegando suas dicas por aqui. ?

    • Poxa, obrigado pelo "maravilhosos".

      Tem muita dica da Itália por aqui! É um país incrível. :)

      Abraço e obrigado pelo comentário, Kátia.

  • Nunca me considerei mochileiro e passei longe de ficar em locais sem água encanada, mas também economizei bastante há anos atrás me hospedando em quartos de albergues, usando banheiro compartilhado e sobrevivendo às custas de fast-food. Assim como você, estou mais exigente agora. Acredito que é uma questão de querer mais conforto, mudar o ritmo de vida (e viagem) e ter como custear certos "luxos".

    • Pois é, a mistura de tudo isso. :)

      Bom que cada fase da vida tem seu estilo.

      Abraço e obrigado pelo comentário.

  • Nossa, super me identifico! Hahahaha
    Meu eu de 2011, que dormiu em quarto pra 72 pessoas e um único banheiro e que achava 15 euros muito pra um passeio turístico com certeza não concorda com você, mas meu eu de hoje, com mais de 30, concorda, apoia e assina em baixo! Engraçado como as perspectivas e prioridades mudam sem a gente nem se dar conta né?

    • Pois é, Pâmela. hahaha

      Confesso que me assustei quando me dei conta de quanto eu tinha mudado! Que meu eu do passado não saiba disso!

      Abraço e obrigado pelo comentário.

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Rafael Sette Câmara

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