Categorias: Crônicas de Viagem

As pessoas que não veremos mais

Ao deixar a pousada às pressas, prometi para o dono que um dia voltaria ali. Não me lembro do nome dele e muito menos do rosto, mas sei que na noite anterior eu o tinha achado chato. Menos de 24 horas depois, o meu mundo inteiro desmoronava e eu me preparava para interromper a viagem e retornar ao Brasil. No meio do caos, o chato foi fundamental para que a volta repentina fosse possível.

Sou grato desde então e não foram poucas as vezes que me imaginei completando aquela viagem, que foi a primeira aventura internacional da minha vida, pela África do Sul. Ainda não aconteceu, seja porque a vida segue adiante enquanto fazemos outros planos ou seja porque, bem, porque tenho um medo irracional de voltar ao local onde eu estava quando o inesperado me deu um soco na cara.

Há cerca de um ano, depois de flertar com uma promoção de passagens para a África do Sul por algum tempo, mas não comprar, aceitei o óbvio. Eu posso até voltar ao país e completar a viagem, mas provavelmente nunca mais vou ver aquele sujeito que me ajudou. E nem o alemão que estava hospedado na mesma pousada, ficou sabendo do ocorrido e que, semanas depois, me mandou um e-mail querendo saber como eu estava, prestando sua solidariedade.

Cape Town, África do Sul

Os dois passaram pela minha vida – e no pior momento dela -, mas dificilmente cruzarão meu caminho de novo. Admitir isso me fez pensar em outras pessoas que guardo em minhas memórias, tanto as felizes quanto as tristes. Pessoas que nunca foram próximas de mim e cujos nomes e rostos me escapam, mas que foram importantes mesmo assim, e que seguem suas vidas em outros cantos do mundo.

E há aqueles que foram, num recorte específico de tempo, próximos de mim. Amigos de intercâmbios, de períodos morando fora. Pessoas que dividiram casa e comida comigo, com quem viajei para lugares inacreditáveis, conversei sobre assuntos diversos e partilhei de tudo um pouco: de festas a bares, de bebedeiras a ressacas, de mochilões a uma tarde sem nada de especial. Gente que foi, numa época irreal, como é típico dos intercâmbios, grande parte da minha realidade.

E mesmo que eu acompanhe as vidas dessas pessoas de longe, pelas redes sociais, eu nunca mais as vi – e talvez nunca retorne a ver. Pode até ser que eu reencontre uma ou outra um dia, mas muitas delas encerraram a passagem pela minha vida e eu pelas delas.

É estranho pensar na falsa sensação de proximidade que Facebook, Instagram e companhia limitada nos dão. Pela internet, acompanhei a viagem que a mulher que há seis anos hospedou três blogueiros brasileiros em Kuala Lumpur, de CouchSurfing, fez com a família, pela China. Nunca mais trocamos uma palavra, mas vi quando ela e a parentada toda subiram a Muralha.

O mesmo vale para o brasileiro que, também no CouchSurfing, aceitou receber três conterrâneos em Munique, permitindo nossa participação na Oktoberfest. Ele abriu as portas da própria casa, cedeu sofás, dividiu momentos e ganhou um queijo italiano, mas nunca mais trocou uma palavra comigo. Pelo Facebook, vi quando ele viajou pela Ásia e, mais recentemente, se casou.

Oktoberfest, em Munique

O afastamento não acontece só com quem conhecemos em nossas viagens, é verdade. Nos últimos cinco anos, vi pouquíssimas vezes ex-colegas de trabalho – e muitos deles não encontrei sequer uma vez. Pessoas com quem dividi quase todos os dias da semana, lanchei, tomei café, trabalhei pesado, fiz piadas, conversei e discuti, mas que hoje se transformaram em avatares, em mensagens de feliz aniversário e nada mais.

Francamente, não sei o que é pior: a era em que as redes sociais não existiam e que as pessoas desapareciam completamente de nossas vidas ou essa, em que uma falsa sensação de proximidade faz que nos afastemos de quem poderia estar mais perto.

Há uns meses, entrei no perfil de Facebook de um colega que faleceu em 2013, uma morte prematura. No dia em que a rede social lembrava que seria o aniversário dele, dezenas de mensagens de quem sentia saudade e lamentava a tragédia. E em duas ou três mensagens, perdidas no meio de todas as outras, alguém desejava feliz aniversário. E dizia: “vamos marcar de encontrar, temos que reunir a turma”.

Estamos todos ali, tão próximos, avatares vizinhos em várias redes sociais. Mas só.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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  • Parabéns por mais um excelente texto. Vocês conseguem fazer com que as pessoas do blog não só se interessem por viajar, não só obtenham ajuda a se planejar, mas fazem com que nós possamos refletir em nossas vidas de modo geral. O blog de vocês é fantástico, indico para todas as pessoas! Vocês me inspiraram muito a fazer meu primeiro mochilão sozinho e depois disso não consegui parar mais! Muito obrigado pelos textos, por favor, nunca parem!

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Rafael Sette Câmara

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