Gentrificação: você conhece essa palavra?

Talvez você nunca tenha ouvido a palavra gentrificação, mas provavelmente conhece os efeitos associados ao conceito dela. A verdade é que eu também nunca tinha me deparado com o termo até começar a estudar sobre cultura, cidades e turismo. Depois disso, não por acaso, também passei a ouvir o termo com certa frequência em rodas de discussão aqui na Europa, em geral em cidades que passaram por esse processo ou lutam contra ele, como Dresden e Porto.

Gentrificação vem do inglês (gentrification) e é um termo criado pela britânica Ruth Glass, em 1963, para comentar sobre mudanças no cenário londrino. “Gentry” é um termo irônico para algo como “bem-nascido”. Basicamente, segundo o Urban Dictionary, a gentrificação seria a renovação urbana de bairros pobres de uma cidade, fato que atrairia novos moradores e geraria uma grande mudança na atmosfera local, aumentando os preços e fazendo com que os antigos moradores tenham que deixar a região, por não terem mais como arcar com os preços.

Feirinha no Brooklyn, Nova York

Claro, essa é a explicação mais simples para um problema bem mais complexo. Já faz algumas décadas que a cultura e o turismo foram percebidos como uma forma de dinamizar a economia de cidades. Com isso, há uma tentativa constante de reformar o espaço urbano para atrair visitantes, gerar empregos e estimular a produção cultural.

Todo mundo se lembra das discussões e manifestações que a Copa do Mundo gerou no Brasil. O fato é que não é só aqui que esses grandes eventos são pensados e organizados com o objetivo de colocar um país no mapa do turismo internacional. Junto com esses eventos vem a especulação imobiliária, as grandes obras e a tentativa de transformação de áreas empobrecidas.

O problema é que, em geral, essa transformação não vem em forma de melhoria na qualidade de vida para a população carente que vive ali. Pelo contrário, ao mesmo tempo que as reformas e investimentos tornam a cidade mais bonita, viva e atrativa para a parcela de classe média e alta, além, claro, dos turistas, as pessoas mais pobres são excluídas desse planejamento. Não é pensada uma cidade criativa e cool que os inclua e proponha um desenvolvimento sustentável: o caminho mais fácil é expulsar essas pessoas dali, seja à força, seja por pressão econômica e social.

Grafite em Dresden, Alemanha

Isso não acontece só no caso de grandes eventos. Boa parte do processo de gentrificação está ligada ao movimento dos moradores da própria cidade. Como artistas e jovens que se mudam para bairros periféricos em busca de aluguéis mais baratos e começam a criar ali um ambiente mais interessante culturalmente para a chegada de mais jovens e investidores. É quando começam a aparecer cafés, restaurantes e lojas descoladas que aos poucos vão transformando o cenário anterior. 

Mas qual é o problema disso? Não seria bom que uma área antes pobre, feia e insegura se torne atrativa e melhor para se viver? Esse pensamento é um tanto quanto inocente. Num artigo chamado “Os perigos da economia hipster”, a autora, Sarah Kendzior, relembra os comentários do diretor de cinema Spike Lee a respeito das mudanças ocorridas em bairros de Nova York, como Brooklyn, Harlem e Bronx. 

O diretor é um antigo morador do Brooklyn, numa época em que a região não era considerada a área cultural e jovem da cidade, coisa que qualquer pessoa que assistiu um filme que se passa em NYC na década de 80 se lembra bem. Ele reclama que foi só com a chegada dos novos habitantes, brancos, que vieram serviços como coleta de lixo e boas escolas públicas. E esse é o grande problema de todo o processo.

Enquanto os defensores dos projetos de gentrificação, revitalização ou qualquer outro nome que se dê, afirmam que simplesmente programas sociais não vão resolver o problema de áreas degradadas de uma cidade, é preciso lembrar que antes das pessoas ricas chegarem ali, a qualidade dos serviços básicos era ruim.

Ou seja, não há um meio termo que permita a revitalização da cidade sem desvalorizar a cultura local anterior. Sim, claro que queremos cidades mais bonitas e agradáveis para viver ou visitar, mas temos que pensar à custa de quem. E por que essa transformação não ocorre pensando em quem já vivia ali originalmente. De que servem ruas, cafés, mercados e praças lindas se só forem para uma parcela privilegiada da população?

Plaka, em Atenas

A verdade é que, às vezes, não prestamos atenção nesse processo nem nas cidades que visitamos, nem nas cidades em que vivemos. É muito fácil visitar um bairro super legal numa cidade e desconhecer todo o processo de exclusão que ocorreu ali. Algumas cidades lutam para tentar barrar um pouco esse movimento.

Berlim parece ser um exemplo interessante desse processo. Atualmente, é uma das cidades que mais atrai jovens e “hipsters” em busca da vida cultural dinâmica e oportunidades de emprego na Europa. Isso, claro, começa a gerar a transformação de bairros e a especulação imobiliária em antigos bairros de imigrantes, como o Neukölln e Kreuzberg.

Mas a população local tem tentado controlar essas mudanças. Por exemplo, já contei aqui que um dos principais muros de grafite da cidade foi coberto de preto pelo próprio artista, protestando contra a expulsão de uma comunidade de ciganos que morava no terreno vizinho ao muro. O próprio Neukölln, mesmo sendo considerado o novo bairro “cool” de Berlim, ainda carrega fortemente suas tradições culturais e imigrantes turcos.

Mercado do Bolhão, no Porto

No Porto, também vi esse tipo de discussão. Ao mesmo tempo que a cidade tem se transformado, com novos espaços e reformas, a população briga para manter suas tradições, mesmo que elas possam parecer decadentes aos olhos dos visitantes, como o Mercado do Bolhão.

Em Dresden, a iniciativa da microrepública de Neustadt surgiu nos anos 90, por parte de um movimento dos moradores locais contra a especulação imobiliária, e até hoje funciona como uma barreira contra a gentrificação do bairro.

No final das contas, não é um processo fácil de se barrar, mas como cada vez mais acredito que os turistas e os moradores de cidades buscam autenticidade e experiências típicas dos locais visitados, esse pode ser o caminho para melhorar as condições de vida para todos e permitir que turistas tenham uma visão mais aberta sobre os modos de vida que existem ali.

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Luiza Antunes

Luiza Antunes é jornalista e escritora de viagens. É autora de mais de 800 artigos e reportagens sobre Viagem e Turismo. Estudou sobre Turismo Sustentável num Mestrado em Inovação Social em Portugal Atualmente mora na Inglaterra, quando não está viajando. Já teve casa nos Estados Unidos, Índia, Portugal e Alemanha, e já visitou mais de 50 países pelo mundo afora. Siga minhas viagens em @afluiza no Instagram.

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  • Curti o tema, nunca tinha ouvido falar sobre o mesmo é bem interessante como isto também ocorre aqui no Brasil, talvez de forma mais sutil ou fraca como preferir.

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