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O que aprendi vivendo com um cachorro

Abri a porta e encontrei o apocalipse. Era o fim do mundo para as nove camisetas e as duas bermudas que tinham sido dilaceradas pelos dentes afiados de um dachshund de oito anos. Triste o dia em que algumas de minhas roupas favoritas passaram para o outro plano, o dos panos de chão.

Esse é primeiro aprendizado de minha vivência com um cachorro. Ou melhor, com esse cachorro específico, o Whisky, destruidor de camisetas e tecidos em geral: nunca deixe a porta do quarto aberta. E jamais, sob pena de ver o mundo acabar em retalhos de camisetas nerds, deixe a porta do quarto aberta se todas as suas roupas limpas estiverem dobradas na cama.

A cena foi tão bizarra que sequer consegui esboçar a reação adequada. Me limitei a recolher pedaços de pano por 37 minutos e a deixar claro que não estava feliz com o ocorrido. O problema é que minha culpa ia além da porta aberta. Em dois anos e meio de convivência diária e pacífica, nada parecido tinha ocorrido antes – e a porta permaneceu escancarada dezenas de vezes, muitas delas com um monte de roupas dando sopa para o espertalhão. Só que, na véspera do incidente, resolvi brincar com o Whisky de um jeito diferente, usando um pano velho – ele puxava de um lado, eu de outro, e víamos quem ganhava o cabo de guerra. Ele gostou da brincadeira e, no fim das contas, destruiu o pano, tudo enquanto eu me divertia tirando fotos. Falei que a culpa era minha, né?

Pois bem. Almocei, saí de casa e fui ao jogo do América, ou seja, uma tarde de domingo normal pelas bandas de cá. Não estranhei quando começou a chover em Belo Horizonte – algo que, fora da época certa, merece até comemoração. Também não achei estranho quando o América marcou um gol, segurou o resultado e saiu de campo vitorioso, algo igualmente incomum no campeonato brasileiro de 2016. Eu deveria ter suspeitado que aquele era um dia atípico, que no momento em que eu pulava cadeiras do Independência e, eufórico, comemorava um gol depois de sei lá quantas rodadas, o Whisky estraçalhava camisetas de Star Wars com um poder de destruição que não é visto desde os tempos da Estrela da Morte.

Em geral o Whisky é um cachorro comportado e sequer late quando algum vizinho chega, para a alegria do condomínio. Não foram poucos os porteiros que chamaram ele de o “cão mais silencioso do prédio”. E acrescentavam: “puxou você”. Tomei como elogio, claro. Mas as semelhanças meio que acabam por aí.

Também não gostei nada quando ele fez a Segunda Grande Peraltice, muito mais nojenta que o assassinato de camisetas: resolveu revirar o lixo do banheiro. Xinguei na primeira vez, xinguei mais ainda da segunda e fiquei puto na terceira, a ponto dele se esconder debaixo da estante para fugir de meus gritos. Minutos depois, já com a casa mais ou menos em ordem, fui tentar puxá-lo (pra limpar as patas, veja bem) e fui recebido com dentadas. Aí o bicho pegou. Coisas foram ditas, mordidas nunca podem ser desditas e com isso o silêncio perdurou por algumas horas no apartamento, cada um no seu canto. Até que ele veio pedir desculpas.

Whisky

Ok, grandes chances dele ter simplesmente esquecido o assunto e agido como o cachorro que é, mas há uma beleza nessa capacidade canina de seguir em frente, sem mágoas e sempre olhando com amor para os humanos que os acompanham. Eu, que de ferro não sou, perdoei o bicho de imediato e acrescentei três itens na lista de aprendizados: sempre fechar a porta do banheiro; nunca tentar tirar um animal assustado de dentro de uma toca e, claro, perdoar mais. Seres humanos, veja bem, porque perdoar cachorros é fácil. Há, claro, um quarto aprendizado possível, mas esse tem esbarrado na minha tendência para a procrastinação – contratar um adestrador. Mas vamos que vamos que chegaremos lá, nem que seja com passos de um dachshund com sobrepeso.

O maior aprendizado, porém, é em outra esfera. Me tornar responsável por uma vida num momento em que eu sequer me considerava completamente responsável por minha própria teve um impacto enorme de amadurecimento. Eu já tive outros cachorros, veja bem. E gatos também – foi uma vida inteira cuidando de animais domésticos.

Só que há uma diferença entre cuidar de um cachorro no quintal ou dentro de casa – é aí que o bicho começa a fazer parte da família. Também é brutal a diferença entre ter um bicho na infância, adolescência e até no começo da idade adulta, como foi o meu caso, e ter já na idade em que a responsabilidade de cuidar – dar água, ração, banho, brincar, levar ao veterinário, passear, recolher a bagunça e educar – é toda sua. Ninguém fará isso por você. Já lidei com doenças diversas, já gastei uma grana em tratamento contra fungos que teimam em aparecer, já voltei mais cedo para casa porque sabia que ele estava com fome e tinha pulado a hora do passeio.

E há a compensação. Embora viajar seja uma parte constante da minha rotina, em geral eu passo a maior parte do meu tempo em casa, trabalhando sozinho no escritório. E são as narigadas dele e aquele olhar irrecusável que me avisam que está na hora do passeio, um motivo para que eu saia de casa e veja o mundo lá fora. Numa vida sem rotina, precisei de um cachorro para servir de relógio. E, claro, de companheiro inseparável, para sempre lembrar o valor das pequenas coisas, nem que seja brincar como uma criança usando uma camiseta velha ou dar uma volta no quarteirão.

Cachorros não são seres humanos, eu sei bem. E isso é ótimo, afinal é sendo um cachorro que ele faz o que sabe de melhor. Nem que seja destruir camisetas.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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22 comentários sobre o texto “O que aprendi vivendo com um cachorro

  1. Ai, que texto lindo, Rafael!!
    Já tive dois desses aí kkkkk
    Pretinhos e lindos como o seu!! Eram um furacão kkkkkkkkkk
    Essa raça é muito desesperada hahaahahhaah Nem sei quantas roupas, sapatos e móveis foram ruídos lá em casa.
    Morreram velhinhos.
    Hoje tenho uma vira-lata que tirei da rua e é a coisa mais linda do mundo!! hahahah…somos apaixonadas uma pela outra.kkkkkk
    De fato, você ser o único, ou o principal, cuidador do animal é uma responsabilidade danada. Mas a vida com cachorro é muito melhor!!!!!

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