Se é para se decepcionar, que seja em Paris

Sentada às margens do Rio Sena, a Torre Eiffel iluminando o cenário do fim de tarde, eu me sentia triste. Eu tinha um saco de papel cheio de cerejas frescas em uma mão, o livro Paris é uma Festa em outra e uma vontade de chorar nascendo no fundo da garganta à medida em que eu me aproximava da última página. Aquela não era a minha primeira visita à cidade, mas foi a primeira vez que eu a vi na companhia de Ernest Hemingway. Visitei a livraria Shakespeare and Co e a banca de jornais em frente ao café Flore e o Les Deux Magots, a mesma que eu já tinha visto inúmeras vezes em filmes. Ver a cidade no papel pelos olhos românticos de um escritor que a pintava com as cores mais bonitas de sua juventude e depois olhar para ela através das lentes sépia dos meus óculos escuros deixava claro: Hemingway e eu não dividíamos a mesma Paris.

A primeira vez que aquele familiar encantamento pela capital francesa surgiu em mim foi ainda adolescente, nas cenas de Amelie Poulain. A impressão que dava era que aquele tipo de romance só poderia nascer entre as barracas dos mercados de rua de Montmartre. No filme Meia-noite em Paris, mais ou menos como aconteceu em Paris é uma Festa, senti saudade de um tempo que nunca poderei viver, de festas, música e arte que fizeram dali a capital do mundo.

Leia também: Paris é uma festa: a cidade aos olhos de Hemingway

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Nenhum lugar é tão idealizado quanto Paris. O problema é que essa Paris não existe.

Em 1986, o psiquiatra japonês Hiroaki Ota identificou um estranho fenômeno entre turistas japoneses na França. A cada ano, pouco mais de uma dezena deles apresentava sintomas como ansiedade, enjoos, sudorese, palpitação, alucinações e uma tristeza extrema ao chegar à capital francesa. Segundo ele, a “Síndrome de Paris” era uma reação ao estresse causado pelo enorme desapontamento que eles encontravam do lado de fora do aeroporto, aliado ao choque cultural extremo, ao jet lag e ao cansaço da viagem. Os sintomas podem ser tão intensos que alguns deles acabam hospitalizados ou, em casos ainda mais graves, precisam ser repatriados ao Japão com auxílio da Embaixada Japonesa. Só em 2011, foram registrados 20 casos de japoneses que sofriam com a Síndrome de Paris.

Daquele lado do mundo, os restaurantes mais caros e famosos costumam ter nome francês. Marcas como Louis Vuitton e Channel são sonhos de consumo expostos nas vitrines de Tóquio e muitas pessoas fantasiam um pedido de casamento em frente à Torre Eiffel. A idealização de uma cidade linda, sofisticada e romântica entra em colapso quando eles encontram uma Paris suja, cheia de moradores de rua, insegura em certa medida e com pessoas ranzinzas e mal-educadas. Para quem passou a vida sonhando com uma Paris de cinema, o peso da realidade parece sufocar.

Reações parecidas já foram identificadas em outras partes do mundo. No século 19, o escritor Marie-Henri Beyle, conhecido como Stendhal, relatou ter sofrido palpitações e outros sintomas ao visitar Florença, porém pelo motivo inverso: um êxtase extremo causado pelas belezas da cidade. Também há registros de fenômenos psiquiátricos semelhantes entre turistas em Jerusalém, causado pelo fervor religioso.

Os japoneses se desiludem com Paris. Todos nós nos desiludimos com algo. Pode ser outra viagem, um romance, a vida. A decepção nunca me levou ao hospital, mas eu e ela somos íntimas. E que sentimento difícil de lidar! Deixa vazio aquele espaço ocupado com as expectativas, sem nada para botar no lugar.

As coisas só são perfeitas na cabeça da gente. Aqui, nessa dimensão em que vivemos, as cores são assim mesmo meio desbotadas, há poeira nos cantos, não existe mágica nem filtro de Instagram. Concretizar um sonho é também sujá-lo de realidade. E essa versão meio imperfeita é tudo o que a gente tem, mas também é a única que pode sair dos eixos, sacolejar, nos surpreender. É só a gente deixar.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones, no Youtube e em inglês no Yes, Summer!. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

Ver Comentários

  • Amo viajar conhecer a cultura , a gastronomia e sempre fico com aquela vontade de voltar mas Paris e Istambul foram exceções...Istambul me senti oprimida e Paris acho que a expectativa era grande e tirando os museus o resto foi uma decepção rs. Londres, Sevilha, Madrid, Roma e todos os lugares que fui na Grécia me deixaram com gostinho de quero mais e sempre que posso volto para matar a saudade.
    Muito bom o seu texto.

    • Ei Verônica, obrigada. Depois que escrevi esse texto estive em Paris mais uma vez e sabe que eu gostei mais da cidade? Não sei se é por causa da vizinhança que me hospedei, Belleville, mas saí com uma sensação melhor de lá...

      Abraços!

  • Texto lindo, que serve para lugares e pessoas, uma vez escrevi sobre a distância me encanta, tudo na minha cabeça é mais colorido, eu vivi essa síndrome em Salvador e no calçadão de Copacabana, tive que ligar celular nas músicas de Vinícius e Ton, pra ajudar kkk

    • Ariane, uma boa playlist pode adicionar a cor que falta nos lugares, não é?

      Abraços e obrigada por comentar

  • Tive essa sensação em Canoa Quebrada (CE)... Tanto falaram dessa praia, e é tão suja quanto Praia Grande (SP)... Lixo na areia... Não gostei.

  • Nunca visitei Paris,mas minha irmã visitou e me disse: "é uma cidade como as outras"...No final todas são. Ou não.
    Vamos para Roma que não decepciona nunca!
    Belo texto! Adorei!

  • Acredito que passei por isso " ao contrário" rsrs. Sempre ouvi a parte ruim de Paris: a sujeira,o mal cheiro nas ruas,a arrogância dos franceses. Sempre dizia que se fosse pra Europa,não iria pra lá. Mas eis que tive uma oportunidade de ir...e adorei Paris! Adorei o clima da cidade(apesar do frio pois fui no fim do inverno, rsrs)!! Acho que tudo depende de nossas expectativas e como conseguimos olhar o lado bom e a beleza das coisas!

    • ahah que bom, Paula! Eu também prefiro ir com expectativas baixas e me surpreender com os lugares. Sempre deixar espaço para surpresas.

      Abraços!

  • Adorei o seu texto , senti algo parecido com isso , mas a minha decepção não foi com a cidade em si , foi mais um sentimento doido , em parte eu queria sentir o que eu sentia lendo livros ambientados em Paris ,mas essa mágica não aconteceu assim na hora , acho que ao chegar no aeroporto e ver a parte moderna me deu um choque de realidade... , queria voltar pra casa correndo e ficar com minhas memórias imaginadas , ... mas a medida que fui desfrutando da cidade , foi um misto de emoções, ao conhecer os castelos , pude sentir aquele vazio nostálgico que eu procurava ... e sim , quero voltar muitas vezes ... Paris , sempre Paris , só temos que procurar o que fomos a trás ....

    • haha, É, Carol, acho que você apresentou todos os sintomas. Que bom que soube dar a volta por cima e aproveitar a cidade.

      Abraços!

  • Já estive 5 vezes em Paris e ainda não me decepcionei. Volto em junho, se conseguir me decepcionar dessa vez, te aviso.

    • Eu TB...não me identifiquei nesse texto sobre Paris..pra mim é um sonho sempre que chego meus olhos se encantam... é uma paixão antiga...

  • Amei o texto, as citações e li até os comentários. Amo os livros e todo encantamento da poesia. Assim, Paris continua sendo um sonho, mesmo já tendo visitado e me encantado pretendo voltar e viver novamente toda poesia.

    • Arlene, é muito bonito quando a gente consegue encontrar nas cidades a magia que a gente sentiu nos livros.

      Abraços

  • Independente de tudo quanto é mazela, que temos e vemos em
    Todos os lugares, Paris é Paris! Estive em Paris no mês de julho do ano passado com
    Minha filha , que mora em Amsterdã, uma linda cidade,
    Sem sombra de dúvida o encanto aumentou e pretendo voltar lá há no
    Meio desse ano! Toda vez que for a Europa vou reservar uns dias para Paris! Basta olhar com olhos de alegria e viajar nos livros e filmes ambientados no cidade luz!

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Publicado por
Natália Becattini
Tags: Reflexões

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