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Quando não estamos no controle, inventamos algo para controlar

Todo mundo tenta, uma vez ou outra, estar no controle de cada aspecto da vida. É isso que deduzo da garrafa pet cheia d’água que descansa, há semanas, no muro de um prédio da minha rua – logo acima do relógio de luz. E não é a única da vizinhança, resquícios de um boato que se espalhou pelo Brasil no começo do século, que garantia: colocar uma (ou duas) garrafas cheias acima do padrão de luz deixa a conta baratinha. Se não dá pra controlar o gasto apagando as luzes e diminuindo o tempo de banho, que seja então com uma garrafa no lugar certo.

Óbvio, não há base científica para o procedimento, o que não significa que ele dê errado. Fosse assim o Brasil não teria visto, na primeira década do século 21, garrafas acima de relógios de luz em praticamente toda grande cidade. Fosse assim a técnica não teria sobrevivido, mesmo que em menor intensidade, até 2018. Que funciona, funciona, mas não da forma que muita gente pensa, que seria uma maneira de adulterar a contagem do relógio. Na realidade, a conta fica mais barata porque o morador, ao sair de casa e se deparar com a geringonça acima do relógio de energia elétrica, se lembra de voltar e apagar as luzes da casa, garantem pesquisadores. Ou seja, em teoria é melhor apagar tudo de uma vez e mandar a garrafa pra reciclagem, mas quem se importa?

Essa história me fez pensar em como tentamos, de formas pouco ortodoxas, controlar o incontrolável, tipo a contagem feita pela companhia de energia elétrica. No meu caso, tentativas semelhantes surgem em dois momentos: em jogos de futebol e dentro de aviões. Comecemos pelos últimos. Como já contei aqui, eu, bem, eu me cago de medo de viajar de avião. Não literalmente, espero, mas em caso de turbulência forte quem sou eu para garantir.

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E olha que nunca passei por situações realmente assustadoras. O momento mais complicado que já enfrentei foi uma arremetida num voo entre Brasília e Belém. Nada de incomum, procedimento padrão e simples para pilotos, mas que foi piorado pela presença de duas dezenas de deputados dentro da aeronave. Muitos deles gente do bem, aquele tipinho que só não lota o inferno porque esse lugar não existe. Enclausurado com uma galera tão agradável e no meio da primeira arremetida da minha vida, pensei o lógico: “só falta o juízo final começar justo por esse voo”.

Pousamos em segurança na segunda tentativa, com todos os passageiros claramente aliviados no final do voo – inclusive parte do Congresso Nacional. O que só confirma que a aviação é o transporte de massa mais seguro que existe e que certos deputados também são humanos, mesmo que muita gente duvide das duas afirmações.

Para algo dar errado num voo, muita coisa tem que falhar, o que não acontece, por exemplo, com aventuras rodoviárias. Em resumo, uma viagem de avião é estatisticamente mais segura que uma feita de ônibus, mas eu sou de humanas e não entendo nada de números, o que faz com que eu tenha medo de voar, não de estradas.

A questão central envolvendo o medo de avião – não só o meu, mas o confessado por muita gente – é que nos ares nós não temos nenhuma falsa sensação de controle. A gente se senta na cadeira e torce pra dar certo, enquanto numa viagem de carro é possível viver a ilusão de que, ao volante, temos o controle de tudo ao nosso redor. O mesmo vale para o ônibus: se não estamos dirigindo, pelo menos pensamos que poderíamos fazer isso, se fosse necessário. Ao menos entendemos a lógica de funcionamento daquela máquina, algo bem mais complicado em aeronaves. A sensação de estar sem controle de nada, entregue aos responsáveis pelo voo, é desesperadora.

É aí que entra a artimanha da garrafa pet no relógio de luz. Ao longo dos anos, fui adquirindo costumes que se tornaram obrigatórios a cada voo. Tipo rezar, algo que só faço, confesso, em aviões – já está tão comum que fiz dos voos as minhas missas, meus cultos, meus momentos com o divino. Depois de afivelar os cintos e me segurar na cadeira, não tente falar comigo. Meus olhos podem estar abertos, mas minha cabeça está no céu, em todos os sentidos possíveis.

Além da recuperação da fé há muito perdida, faço outras coisas que, garanto, são tão importantes para a segurança do voo quanto as feitas pelos engenheiros e pilotos. Tipo mandar e receber as mesmas mensagens e me sentar mais ou menos no mesmo lugar. Se nunca deu errado, quer dizer que deu certo, tipo a garrafa pet. Já voei depois de me esquecer de uma ou outra técnica, claro, mas o voo foi bem mais tenso, mesmo que só para mim – o piloto e até os outros passageiros não diriam isso.

Tenho um comportamento parecido sempre que vou ao estádio ver o América jogar e estou convencido que, se meu time perde, não é pela falta de eficácia dos atacantes, mas porque eu deixei de fazer alguma coisa do ritual sagrado. Diga o que você quiser, mas este ano o América só perdeu quando eu estava a centenas de quilômetros de distância. A explicação poderia ser a de que coincidentemente só não fui aos jogos contra adversários mais complicados, mas acreditar nisso seria assumir que não tenho o controle, o que não é tarefa fácil.

Estrada Argentina

Crescer, aprendi com muita terapia, envolve assumir que não temos o controle de tudo. Nem de voos, nem de jogos, nem de tudo que ocorre durante uma viagem, por exemplo. E muito menos de cada aspecto de um relacionamento ou de cada coisinha, boa ou ruim, que acontece nas nossas vidas ou nas vidas de quem amamos. E, muitas vezes, por medo de assumirmos que não temos como controlar os resultados de algo importante, preferimos a saída fácil dos rituais e superstições. Por medo de não estarmos no controle de algo, inventamos algo para controlar.

Saber disso eu sei bem. Mas, pelo sim ou pelo não, melhor colocar aquela garrafa no relógio de luz.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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10 comentários sobre o texto “Quando não estamos no controle, inventamos algo para controlar

  1. Que belo português. Não dá vontade de parar de ler.

    Sobre o contexto, você tem toda a razão! Ter o controle de algo, mesmo que irreal, nos faz sentir melhor. A vida é assim e não reclamo, aliás gosto! rs…

  2. Nesse mundo atual,o que mais aparece,são pessoas controladoras,querem passar qualquer tarefa,mais rápido possivel,para poder ficar sem fazer nada, pede e pede toda hora,Excelente Artigo,Abraços Palestrante Flavio Peralta

  3. Rafa,muito massa teu texto 🙂 sempre me lembro dessa história se não estar no controle quando entro em um avião. Bom saber que não sou a única haha

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