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Belo Horizonte, a capital que cresceu escondendo seus rios

Dizem que é uma rua, mas na realidade é uma tragédia. E que começou quando, com pompa, placa e festa, a prefeitura fechou o rio, tudo em nome do progresso. Aqui não se vê água mais, disse o político. Os pernilongos e o mau cheiro vão desaparecer, pensou a população. Que ganhou mais espaço para seus carros.

O mundo acabou quando a cidade resolveu por um fim no Córrego do Acaba Mundo. E com o do Leitão, o da Serra, o Mangabeira e, mais tarde, com grande parte do Ribeirão Arrudas – dê duas gerações e vai ser raro o belo-horizontino que se lembre que sua cidade tinha água. Década após década, uma capital que teimava em crescer fez isso escondendo seus rios. Dos 654 km de cursos d’água que cortam Belo Horizonte, 208 são hoje invisíveis.

Mas invisíveis só na superfície, afinal um rio não morre tão facilmente. Basta uma chuva mais forte para o Leitão acordar. E para de córrego canalizado virar um rio caudaloso, que nasce no Bairro Belvedere, passa pelo São Bento, desce para a Avenida Prudente de Morais, encontra a Praça Marília de Dirceu, entra na Rua São Paulo e, enfim, deságua no Arrudas, ali pertinho do Mercado Central. Não por acaso essa foi exatamente a rota de destruição deixada pela chuva deste fim de janeiro. Você pode chamar de tragédia, mas é só um rio retomando seu espaço, quebrando o asfalto para mostrar que está vivo. Poluído e transformado em esgoto, mas vivo.

Ano após ano, tentam nos dizer que o problema é a chuva. Nunca choveu tanto, garantem. E é verdade. Mas quem disse que o futuro promete ser mais seco? Numa cidade-enchente, nada mais natural que ver casas, prédios e restaurantes transformados em ilhas a cada verão. Com a geladeira que desce o rio, a árvore que cai e o carro que é arrastado pela água, parece que se vão também nossas memórias. Toda lembrança é sugada junto com a vida.

córrego do acaba mundo

Córrego do Acaba Mundo antes de ser coberto por asfalto, nos anos 1960

Sofremos a cada barraco que desaba, mas só para tudo esquecermos pouco depois. Sobra chuva e faltam obras, mas também falta empatia. Em 2012, Belo Horizonte era a cidade das 200 enchentes – e olha que nesses oito anos já não dá para contar os alagamentos nos dedos das mãos. E assim vamos, de janeiro a janeiro, tentando alcançar a terceira centena.

Com uma camisa azul suja de lama, uma mulher mexe nos escombros de um barraco que foi engolido pelo rio. “Achei um vestido que serve pra mim. É só lavar que dá para usar”, diz ela, que tinha perdido tudo. Enquanto isso, na Rua Guaicurus, centro de BH, outra mulher completamente suja de lama tentava achar comida em meio ao que tinha sido arrastado pela enchente.

Relato que poderia ser da chuva desta semana, mas foi há quase 40 anos. Lamentamos a enxurrada de 2020, mas não há memória coletiva que se lembre de 1983, quando quase 50 belo-horizontinos perderam a vida numa enchente que arrastou, ribeirão abaixo, parte de uma favela. Essa é, até hoje, uma das maiores tragédias da capital mineira.

Já nos esquecemos do casal de idosos que em 2009 morreu afogado dentro do próprio carro, ao serem surpreendidos por uma enxurrada na Avenida Prudente de Morais. A mesma que, onze anos depois, a tantos impressiona ao de novo surgir alagada.

Sequer da Avenida Vilarinho nos lembramos, lugar em que mãe e filha, uma criança de seis anos, se afogaram no trânsito, quando da rua ressurgiu um rio de dois metros de profundidade. Elas foram encontradas abraçadas, terço entre mãos. Isso não tem dois anos.

A saída, apontam os especialistas, existe. Mas é complexa. Há quem defenda a renaturalização dos córregos. Mas por enquanto o que temos é que rios e córregos não são mais canalizados. Já é alguma coisa. Sobre esse assunto, vale conhecer o Projeto Manuelzão, da UFMG, e o livro Rios Invisíveis da Metrópole Mineira, de Alessandro Borsagli. E existe o exemplo de Curitiba, onde enchentes do rio Barigui eram constantes até os anos 1990, e que diminuiu o problema criando várias áreas verdes, principalmente ao longo de rios e córregos.

Enquanto o progresso não cria coragem de corrigir o passado, seguimos com o triste horizonte de uma cidade que canalizou seus rios para evitar doenças, atender aos carros e ao mercado imobiliário, e, ironicamente, evitar enchentes.

Na frente da minha casa corre um rio. Um rio que já teve muretas simpáticas e pontes. O problema é que há 60 anos ele se chama asfalto.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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