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Atlas: Lisboa, Portugal

Não interrompa o Fado Vadio

Às 21h em ponto, João Carlos, vestido de terno e gravata, toma seu lugar no meio das mesas da pequena Tasca do Chico em Lisboa e pede aos clientes que parem de falar por alguns minutos. Quando consegue a atenção de todos, chama os músicos que vão acompanhar os fadistas a noite toda: uma dupla com viola e guitarra portuguesa. É dele também a responsabilidade de apresentar cada uma das estrelas do espetáculo que começará em breve e de pedir aos ouvintes que, por favor, não interrompam o fado. O silêncio é obrigatório quando o mais português dos ritmos começa a soar.

É preciso chegar cedo para garantir um lugar na Tasca do Chico, que conta com dois espaços nos endereços mais tradicionais do fado vadio, Bairro Alto e Alfama. Na casa de Alfama são apenas seis mesas, disputadíssimas na noite de Lisboa. A casa, em funcionamento há mais de vinte anos, nunca perdeu a cara de negócio simples e familiar: as mesas cobertas com toalha xadrez, os bancos de madeira, as paredes de azulejo branco quase completamente cobertas com fotos de gente ilustre que já passou por ali. O cardápio ainda é escrito a giz logo acima do balcão e, ao contrario de muitos outros endereços no bairro, região famosa pelas casas musicais, o Chico ainda não se rendeu ao inglês e aos clientes estrangeiros. Durante todo o tempo que permanecemos lá dentro vendo artistas profissionais e amadores revezarem o microfone, a maioria dos frequentadores ainda era português. E nós abrimos e fechamos o bar, preciso dizer.

O fado vadio nasceu nas ruas de Lisboa. A expressão – que não agrada a todos os apreciadores da música – fala das canções entoadas nas tascas  (que são os equivalentes portugueses aos nossos botecos), pátios e becos das regiões mais humildes da cidade, muitas vezes de improviso e de forma descompromissada: era só chegar e cantar. Essa origem boêmia rendeu ao estilo a má fama de ser associado à vadiagem, ao alcoolismo e à prostituição. Com o tempo, no entanto, passou a ser parte indissociável da identidade lisboeta e portuguesa, sendo reconhecido como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela UNESCO, em 2011.

“Cada fado que eu canto tem um significado para mim, representando algo numa fase da minha vida. O fado tem esta particularidade. Ele cresce dentro da gente e irradia para o público por meio da voz e do corpo do cantor”, diz Sônia Soprano, uma das cantoras que se apresentam não apenas na Tasca do Chico, mas em diversos endereços do Bairro Alto e Alfama. Estudante de canto lírico desde pequena, cresceu ouvindo fado dentro de casa e vendo sua mãe cantar noite e dia, sempre de modo informal.

Sonia Soprano Fado Lisboa

Sônia Soprano. Foto: Shutterstock, por Sopotnicki

Colecionando referências musicais dentro e fora do fado, ela se apresentou pela primeira vez como fadista em um evento beneficente para a Associação Auxílio e Amizade, que ajuda pessoas em situação de vulnerabilidade social. Foi muito elogiada por todos, inclusive por cantores profissionais que estavam presentes. O encontro rendeu os primeiros convites para que ela se apresentasse nas casas de Lisboa:

“O ambiente noturno é mais pesado por tudo o que acarreta, por ser essencialmente boêmio. No entanto, é também onde acontecem os encontros mais bonitos de músicos, formando tertúlias de fado e fundindo estilos lusófonos que nos preenchem a alma enquanto artistas”, conta.

A história do fado se confunde com a do país. Nascido no século 19, nas praças, nos retiros, becos e tabernas de Lisboa, principalmente no bairro de Alfama. Espaços nos quais conviviam marinheiros, pescadores, prostitutas e pessoas das classes mais populares, muitas delas vindas de longe: existe hoje um consenso entre os historiadores de que, na raiz do estilo, há influência do lundum e a umbigada, ritmos levados de navio pelos africanos que, antes de desembarcarem em Portugal, passaram algum tempo no Brasil.

Os temas abordados refletiam essa origem: num primeiro momento, cantava-se sobre emergência urbana, criando com a melodia pequenas narrativas daquele cotidiano marginalizado. Com o tempo, foi ganhando terreno na vida pública da cidade, em festas populares e apresentações artísticas, até se tornar parte dela. A consagração se consolidou no século 20, conquistando novos espaços muito mais elitizados com a aparição das companhias de fadistas profissionais, os discos e os espetáculos em teatros e casas de show. Com a popularidade de Amália Rodrigues, na década de 1950, o fado transformou-se, definitivamente, em um símbolo nacional.

Fado ao vivo em Lisboa

Símbolo esse que foi apropriado de forma indevida pelo regime de Antônio Salazar, ditador fascista que governou Portugal entre 1933 e 1968, que buscava a pacificação e alienação da população nos “Três Fs”: Futebol, Fado e Fátima (simbolizando a religião), os pilares do nacionalismo de seu governo.

Com a Revolução dos Cravos e a redemocratização do país na década de 1970, a associação com o regime rendeu ao fado um certo desprestígio entre a parcela progressista da população. “O fado era uma das poucas formas de arte admitidas naquela época e, como toda arte, foi utilizada em nível político também”, explica Sônia. “Eu, no entanto, considero que o Fado sempre foi mais que isso, e sempre será”. E ela não está sozinha nessa opinião. Com, entre outras coisas, o reconhecimento da UNESCO e o consequente interesse internacional, essa associação vem sendo desfeita rapidamente até mesmo entre a população mais jovem, que hoje se volta orgulhosa para a tradição.

Serviço – Tasca do Chico

https://www.tascadochico.com/

Abre de quinta a domingo, das 19h às 03h

Bairro Alto: Rua do Diário de Notícias 39

Alfama: Rua dos Remédios, 83

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones, no Youtube e em inglês no Yes, Summer!. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

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3 comentários sobre o texto “Não interrompa o Fado Vadio

  1. Fado é coisa muito séria! Uma vez,em Sintra, jantando com meus primos portugueses, em uma esplanada, havia um conjunto tocando fado. Eis que um casal de “gringos”, levanta-se e começa a dançar. Minha prima, quando viu a cena, ficou irritada e indignada. Disse logo: “fado não se dança, sente-se!”

    1. hahah agora eu entendo ela, Cândida! Mas um estrangeiro desavisado vai acabar sendo repreendido pelos portugueses. Acho muito incrível como as manifestações culturais são construídas em cada lugar!

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