Júlio César Machado, um dos grandes nomes da crônica portuguesa

A partir da década 1820, com a abolição da Comissão de Censura sobre os “papéis volantes e escritos periódicos”, Portugal viu um salto na produção jornalística e literária local, proporcionado pelo surgimento de um grande número de novas publicações. Foi nesse cenário que o escritor Júlio César Machado se consagrou como um dos principais nomes da crônica portuguesa, que acabara de encontrar o espaço perfeito para para se desenvolver. 

Na época, a crônica foi batizado no país de folhetim, e seus autores, de folhetinistas, em referência ao tipo de publicação nos quais elas, em geral, costumavam aparecer. Trazendo uma proposta híbrida entre o jornalismo e a literatura, a crônica portuguesa oitocentista contava com mais apreço entre o público que qualquer outro tipo de leitura jornalística ou literária.

Sobre essa enorme preferência pelos textos curtos, leves e que “não excedessem o fôlego do leitor”, Júlio César Machado disse, no prefácio de seu livro Contos a Vapor:

“A poesia dorme, o drama está estéril na sua fertilidade, o romance titubeia entre as combinações monstruosas e a monotonia dos estudos fisiológicos: os mais intrépidos hesitam e recuam antes de tentar um livro: passou a época das histórias sangrentas, dos casos de subterrâneo, de salteadores, de hospitais, de rapto, de galés, e de rua suja; o teatro, ao contrário, morde ainda nesse pomo, e ressona com sinceridade em se lhe oferecendo as delícias tranquilas e literárias dum drama íntimo. Precisava-se alguma coisa nova, que acordasse os ânimos, e a folhetinomania apareceu como um expediente.”

Um dos maiores expoentes desse fenômeno literário de sua época, Machado transitou também entre outros gêneros, como o conto, a dramaturgia e o romance, sem nunca perder seu estilo leve, direto e divertido. Marcas que estão presentes nas três obras selecionadas para a edição de janeiro do Clube Grandes Viajantes.

Retiradas, respectivamente, dos livros Contos ao Luar, Passeios e Fantasias e Cenas da Minha Terra, as três histórias falam das andanças de Machado por sua terra natal e registram um pouco da cultura e da história do povo português no século 19. 

Embora um pouco diferente das demais obras que compõem esse livro por se tratar de um conto ficcional, “Os Dois Pescadores de Leça” narra, em meio a um conflito amoroso, as tradições pesqueiras e dos rituais de São João celebrados até hoje no país. 

Tanto “Três Dias em Évora”, quanto “Recordações do Porto”, por outro lado, são crônicas de viagens que registram as detalhadas observações do autor sobre as cidades visitadas, sempre com leveza, humor e sagacidade. Em Évora, Machado se debruça sobre a religiosidade ferrenha do português e nos transporta para pontos turísticos icônicos da cidade, como a Capela dos Ossos. No Porto, o destaque é para os costumes sociais e culturais, algumas vezes contrapondo-os com os da capital, com foco no teatro e na cena literária local. 

Julio César Machado

As crônicas e o humor de Júlio César Machado

Nascido em Lisboa em 1835, o escritor chegou a frequentar a escola militar nos primeiros anos de sua vida. Já nessa época, manifestava um grande interesse pela literatura, algo ao qual seu pai se opunha de forma autoritária. Acabou fugindo da escola depois de sofrer maus-tratos de um professor de latim. Em seguida, se matriculou no liceu, o equivalente ao nosso Ensino Médio, onde começou a se dedicar à escrita, em especial de peças de teatro. 

Aos catorze anos, emplacou pela primeira vez um romance na revista literária A Semana, do renomado escritor português Camilo Castelo Branco, intitulado A Estrela de Alva. Na crônica Recordações de Porto, o escritor narra uma visita ao velho amigo, que na época estava preso na Cadeia de Relação pelo crime de adultério, e se recorda de que foi Castelo Branco o primeiro a abrir-lhe as portas da carreira literária.

Depois da morte de seu pai, precisou fazer da escrita uma profissão, trabalhando como tradutor e, mais tarde, como folhetinista no jornal A Revolução de Setembro. Seu segundo romance, Cláudio, foi publicado quando tinha apenas dezessete anos. Desde então, passou a maior parte da sua vida na boêmia, no jornalismo e nas tertúlias literárias, encontros nos quais os participantes leem e debatem clássicos da literatura universal. 

Muito influenciado pelo idealismo romântico de Balzac (escritor francês), escreveu ainda outros contos e romances bem recebidos pelo público. Entre eles, destacam-se os livros A Mulher Casada, A Vida em Lisboa, Contos ao Luar e Contos ao Vapor. Seguiu aventurando-se também pelo teatro, arte da qual era um grande admirador e que sempre esteve presente em seus escritos, como crítico ou dramaturgo. Mas foi na crônica, ou no folhetim, que finalmente garantiu seu espaço no círculo literário da sociedade portuguesa da época. 

Isso talvez se justifique por seu estilo simples e direto de escrever, acessível ao grande público e muito bem-humorado, utilizando-se quase que exageradamente de reticências e exclamações que transmitem uma visão leve e divertida dos lugares e pessoas que cruzaram seu caminho. 

Ele próprio chegou a dizer, na introdução de seu último livro Mil e uma Histórias: “Que outros metam ombros a grandes histórias, romances em largos volumes, contos da proporção de um romance, vamos, nós, a entreter-nos, com os casos, os ditos, os feitos e gestos de Pedro, de Paulo, de Sancho e de Martinho…Tudo é grande agora, bem se sabe, letras, artes, política, e coisas; deixem, todavia, que um fiel que sempre foi dado à alegria e à sensibilidade, venha a recitar, a meia-voz, suas oraçõezinhas perante o altar da anedota”. 

O cotidiano da sociedade portuguesa era um de seus temas mais frequentes, seguido pelas viagens que realizou em seu próprio país e outras partes da Europa. Seja qual fosse o tema, ele sempre estava pronto para transformá-lo em uma anedota bem humorada, irônica ou mesmo maliciosa, criando muitas vezes caricaturas excêntricas dos personagens que escolhia para colocar no papel. 

Como contista, Júlio César Machado também alcançou grande sucesso. Seu livro Contos ao Luar vendeu cinco mil exemplares em oito meses, resultando em três edições somente nesse período, feito que o próprio autor atribui a um milagre concedido pela lua. O êxito, no entanto, se deve mais a mistura de influências do romantismo, estilo em voga na época, com o naturalismo que começava a surgir, e da harmonia da prosa que passava do triste para o cômico, da fantasia para a realidade, da seriedade para a sátira. 

Diante de tanto bom humor, seria difícil prever que seu desfecho seria tão trágico. Júlio cometeu suicídio em 1890, dois meses após o seu único filho também ter tirado a própria vida. 

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones e no Youtube. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

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