Sentada no chão, uma menina abraçava carinhosamente uma galinha. A criança estava acompanhada por sua família, que se reunia na frente de um altar improvisado dentro da igreja principal de San Juan Chamula, no México. Mas a presença da ave – que seria sacrificada em instantes – não era o que mais chamava minha atenção. Eram as garrafas de Coca-Cola.
Cada canto da igreja, um templo católico dedicado a São João Batista, o profeta que batizou Jesus, estava tomado por pequenos altares improvisados, todos no chão coberto por folhas de pinheiro. Por ali não há bancos e as imagens dos santos foram deslocadas para as laterais da igreja, onde mesas de madeira e outros móveis serviam de apoio para milhares de velas acesas. Na frente de cada altar estavam mais velas e várias garrafas de refrigerante. A Coca é a favorita dos fiéis, mas Pepsi e outras marcas também têm lugar nos rituais.
Chamula tem pouco mais de quatro mil habitantes, todos tzotzil, um grupo indígena de origem maia. O sincretismo tomou conta da cidade há séculos, com a chegada dos colonizadores, que tentaram impor a fé cristã. A igreja, embora em tese permaneça católica, não vê missas há um bom tempo. Por ali, a fé é liderada por xamãs, que comandam as rezas, ouvem os fiéis e realizam os rituais diários. Homens e mulheres fazem orações para santos católicos, em especial São João Batista, mas não é difícil perceber que muitos deles representam também divindades maias.
Enquanto algumas pessoas cantavam uma música na língua Tzotzil, o primeiro idioma de quase toda a população da cidade, um xamã pegou a galinha das mãos da criança. A ave foi esfregada em cada pessoa presente na cerimônia, uma espécie de ritual de purificação. Depois, com um único movimento, ele quebrou o pescoço do animal, que foi deixado inerte ao lado da família. Durante todo o processo, fogos de artifício eram lançados, a cada par de minutos, do lado de fora da igreja.
Após o sacrifício, o religioso começou a abrir as garrafas de refrigerante, que eram passadas para cada membro da família presente na cerimônia. A Coca-Cola é uma presença relativamente recente no ritual, afinal a bebida só chegou ali na década de 1960, mas o objetivo alcançado com ela já existia: causar arrotos. E logo eles chegam aos montes, nas crianças e nos adultos. Para eles, arrotar equivale a expulsar espíritos ruins do corpo, uma etapa importante da fé praticada em Chamula.
O passo seguinte também envolve uma bebida, mas dessa vez o pox, uma espécie de aguardente usada pelos maias para uso cerimonial. Um copo com a bebida alcoólica foi passado para todos os presentes. Enquanto o ritual daquele grupo acabava e as pessoas começavam a se levantar, pequenos grupos faziam as mesmas coisas em vários cantos da igreja, que funciona 24 horas horas por dia. Do lado de fora do templo não é raro ver homens dormindo embriagados, uma consequência do ritual, sobretudo durante as festividades religiosas.
Deixei a igreja junto com aquele grupo, mas outra procissão já se preparava para entrar. Enquanto foguetes cortavam o ar do lado de fora do templo, olhei pela última vez para as paredes, tomadas por santos e velas. Algumas das imagens tinham espelhos no peito, outra característica da fé por ali, uma forma de impedir que a alma do fiel deixe seu corpo durante o momento de oração – ou que pelo menos saiba como voltar.
Nos anos 1960, outra igreja em Chamula, a de São Sebastião foi destruída pelo fogo. As ruínas dela ainda podem ser vistas na entrada da cidade, ao lado de um cemitério. Não sei se as chamas foram causadas pela combinação de milhares de velas no chão coberto com folhas de pinheiro e madeira, mas confesso que esse foi um medo que tive assim que entrei na igreja. Hoje, alguns homens se encarregam de apagar as velas que estão perto de serem consumidas e o chão é varrido constantemente.
Algumas imagens de santos foram resgatadas do incêndio. E permaneceram por décadas na nova igreja, mas em lugares de menor destaque e sem a decoração recebida pelas outras. E durante muito tempo elas foram posicionadas de costas para os fiéis e olhando para a parede. As imagens foram punidas por não terem sido capazes de proteger a igreja do incêndio.
Chamula fica a poucos quilômetros de San Cristobal de las Casas, uma das principais cidades do estado de Chiapas. Foi ali que surgiu o zapatismo, movimento político que balançou o México em meados da década de 1990. Características que dão a Chamula uma certa autonomia política, como pode ser visto também do lado de fora da igreja, que, por sinal, tem fachada simples. Na praça principal e ao lado do mercado, homens com vestes pretas e brancas, feitas de pelo de ovelha, se dirigiam para os prédios públicos – por ali, roupas são um importante indicador da função social de cada indivíduo.
Fotos dentro da igreja são totalmente proibidas, embora a explicação para isso seja polêmica: algumas pessoas dizem que é porque o povo tzotzil acredita que fotos capturam a alma das pessoas; outros afirmam apenas que isso é uma falta de educação, principalmente durante rituais religiosos. Em todo caso, quem desobedece e saca a câmera no interior do templo pode ser punido com multa, perda do equipamento fotográfico e até mesmo com um tempinho na prisão. Convém evitar também fotografias de pessoas, principalmente líderes religiosos, mesmo que na praça principal ou em lugares públicos.
Visitantes pagam 25 pesos para entrar na igreja. A taxa deve ser paga na lateral do edifício e é revertida para a manutenção do lugar – por exemplo, para comprar as folhas de pinheiro e as velas. Para chegar em Chamula, pegue uma das vans que partem dos arredores do Mercado Jose Castillo Tielemans, em San Cristóbal. A passagem custa 18 pesos.
Uma boa ideia é combinar a visita com passagens pelo mercado e também pela feira de artesanato que fica no meio do caminho entro o centro de San Cristóbal e o local de onde partem as vans. Também dá para contratar um tour para ir até Chamula numa das agências de turismo que ficam no centro da cidade.
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Gostei muito da tua descrição. Chamula é bem assim. Continuamos subindo a montanha até Oventic, o estado rebelde dos zapatistas. Na volta, paramos nas cooperativas das mulheres indígenas que fazem aqueles chales maravilhosos. Podemos vê-las tecendo, tingindo… É mesmo um belo passeio. Recomendo.
Carmen
Olá Rafael, adorei as dicas pq amo lugares e manifestações culturais! Esses rituais religiosos em Chamula acontecem todos os dias ou só em algum dia específico?
Que eu me lembre é diariamente, Rochelle.
aloha! Tenho ainda duas recomendações para a região Primeiro ir ao Museu de Medicina Maia em San Cristobal porque lá você aprende muitas das coisas que vai ver na igreja de Chamula. A outra é esticar de Chamula a Oventik, o gigantesco acampamento Zapatista. Na porteira você é recebido por homens com o rosto totalmente cobertos por balaclavas e pede permissão para visitar. Eles te perguntam um pouco sobre você e vão consultar um dos chefes. Quase sempre liberam e lá dentro é bem interessante, vale pra ver uma forma alternativa tipo um governo paralelo 🙂
Fala, Gustavo. Acho que você tinha me dado essas dicas, né? Tentei ir no Museu de Medicina, mas não conferi os horários e dei de cara com a porta fechada. Ficou pra próxima!
Sobre o acampamento zapatista, eu não fui, mas depois a Natalia, aqui do 360, esteve lá também e visitou. Ó: https://www.360meridianos.com/dica/oventic-caracol-zapatista-chiapas
Você está no Havaí ainda?
Abraço.
Gostei do artigo, retrata exactamente o local e aquilo que foi explicado pelo guia quando da minha visita pelo México em 2014. Uma viagem memorável desde a cidade do México até à Riviera Maya.
Fico feliz que tenha gostado, Graça.
Abraço e obrigado pelo comentário.
Olá, Tudo Bem ?
Espero que sim Rafael Sette Câmara, adorei seu artigo, é muito bom visitar seu blog e ler os seus artigos, sempre estou aprendendo coisas legais aqui no seu blog.
Parabéns !!
Que bom que gostou, Maria.
Muito obrigado pelo comentário!
Abraço.