Sete Quedas: como a maior cachoeira do mundo desapareceu

Em outubro de 1982, a maior cachoeira em volume d’água do mundo simplesmente desapareceu. Em questão de 14 dias, o Salto das Sete Quedas foi engolido pela água do rio Paraná, que formou ali a represa da segunda maior hidrelétrica do mundo com o fechamento das comportas de Itaipu.

As quedas eram formadas por um conjunto de 19 saltos, agrupados em sete grupos – daí o nome. O canal principal media quatro quilômetros de comprimento e chegava a 170 metros de profundidade. Mas a grandiosidade das Sete Quedas era medida em outro valor: o imenso volume de água que despencava dos paredões de rocha: 13.300 m³/segundo.

Para se ter uma ideia do que isso representa, as Cataratas do Niágara, que agora ocupam o primeiro lugar no ranking de cachoeiras com o maior volume d’água do mundo, tem apenas metade desse volume. E a Victoria Falls, na Zâmbia, é três vezes menor.

Quem teve oportunidade de ver de perto tamanha força da natureza ainda se lembra do barulho estrondoso da água escorrendo pelas rochas. Os moradores da região afirmam que o som poderia ser ouvido a mais de 30 quilômetros de distância das Sete Quedas.

Durante a década de 1970, a cachoeira recebeu seu maior fluxo de turistas, entre brasileiros e estrangeiros. O roteiro completo pela região incluía também as Cataratas do Iguaçu. O mercado turístico era a principal fonte de renda dos moradores de Guaíra (PR), que chegou a ser a cidade mais visitada do Brasil e viveu anos de grande crescimento econômico.

Em 1966, no entanto, a ditadura militar, no comando do general Castelo Branco, assinou o decreto que autorizava a submersão das Sete Quedas para a formação do Lago da Usina de Itaipu. Em 1979, já no governo de Figueiredo, a execução do projeto avançou. Nos três anos seguintes, o fluxo de turistas aumentou ainda mais, todos ávidos pela última oportunidade de ver de perto uma das maiores maravilhas naturais do mundo, que estava prestes a desaparecer.

 Reportagem do jornalista Cley Scholz, correspondente do jornal O Estado do Paraná 

De toda essa grandiosidade, restaram apenas os vestígios das rochas que reaparecem vez ou outra na superfície do lago Itaipu em períodos de seca.

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Sete Quedas: onde ficava a maior cachoeira do mundo?

Localizada na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, o Salto das Sete Quedas ficava no rio Paraná, próximo ao município de Guaíra, do nosso lado da fronteira, e de Salto del Guaíra, no território dos nossos vizinhos.

Sete Quedas antes de depois da inauguração de Itaipú

Para se ter uma ideia do impacto da obra, veja as fotos comparando o antes e depois da região onde ficava a Sete Quedas:

Foto: JWS (Reprodução)

Fotos: Domínio Público

Os impactos do fim das Sete Quedas

Para a criação da usina de Itapu, não apenas as Sete Quedas, mas uma área equivalente a 135 mil hectares precisou ser inundada no estado do Paraná. As 40 mil pessoas que viviam na região, entre indígenas e não-indígenas, precisaram ser removidos para outras áreas.

Nos anos que se seguiram ao desaparecimento das quedas, Guaíra viu a prosperidade alcançada por meio do turismo desaparecer. A cidade, que era uma das forças econômicas do Paraná e chegou a ter 60 mil habitantes, viu sua população cair pela metade e sua importância estadual ser reduzida drasticamente.

Isso perdurou até que a cidade pudesse se reinventar economicamente, encontrando novas matrizes econômicas que a possibilitaram retomar seu crescimento. Somente em 2019, o Senado aprovou uma lei que aumentava o repasse dos royalities da usina para o município, em reconhecimento às perdas sofridas pelo município.

Mas os moradores da cidade paranaense não foram os únicos a serem duramente atingidos pela submersão das Sete Quedas. Além da extinção de um patrimônio natural único e do impacto no turismo, tanto Guaíra quanto outros municípios da região perderam quilômetros e quilômetros de terras agriculturáveis.

Ainda, a construção de Itaipu gerou uma série de violações de direitos dos povos indígenas da Tríplice Fronteira. Algumas delas não terminaram com o fim das obras, seguem sendo reproduzidas até os dias de hoje, trinta e sete anos após o alagamento.

Em 2019, a Procuradoria Geral da República pediu a condenação da União, do Estado do Paraná, da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Itaipu Binacional por danos causados ao povo Avá-Guarani, residente no Oeste do Paraná.

Entre os direitos violados, estão a negação da existência, identidade e o impedimento à presença indígena nos territórios atingidos, que foram obrigados a sair de suas terras tradicionais e sagradas. Há ainda fortes indícios de que os estudos feitos pelo governo militar subestimaram e desconsideraram o grande número de indígenas que habitavam a região.

Além de perder o direito à terra, os indígenas viram suas moradias serem destruídas, tiveram redes de relacionamento rompidas e perderam seus modos de produção e vida próprios ao serem reassentados em locais precários. No relatório enviado em 2019, a Procuradoria Geral da República afirma:

“A usina causou a destruição não só do passado e do presente da etnia, mas também comprometeu o seu futuro, por privá-la de reparações e compensações devidas e por provocar o desaparecimento de referências importantes para as futuras gerações”

Carlos Drummond de Andrade dedicou um poema a lamentar a morte da cachoeira:

Sete quedas por nós passaram,
E não soubemos, ah, não soubemos amá-las,
E todas sete foram mortas,
E todas sete somem no ar,
Sete fantasmas, sete crimes
Dos vivos golpeando a vida
Que nunca mais renascerá.

Carlos Drummond de Andrade

A questão energética e a construção de Itaipu

Obra faraônica da ditadura militar, a Usina de Itaipu foi construída em um acordo entre o Brasil e o Paraguai e acabou por resolver um impasse histórico sobre a fronteira, que se estendia desde o século 18. A obra foi ainda responsável por aumentar o potencial energético que possibilitou, nos anos que se seguiram, um maior desenvolvimento do país.

Atualmente, a usina de Itaipu é responsável por quase 20% de toda a energia elétrica nacional. Além de energia, a empresa investe também em desenvolvimento tecnológico, econômico, na qualidade de vida na região e tem uma diversidade de programas educacionais.

O Brasil se orgulha de ter uma matriz energética limpa e renovável, recorrendo relativamente pouco à energia fóssil e nuclear. Isso sem dúvidas só é possível graças ao enorme potencial hídrico do país. No entanto, classificar a energia hidrelétrica como limpa deixa de considerar os profundos impactos sócio-ambientais que as usinas provocam.

Itaipu foi, sem dúvidas, uma obra que definiu os rumos do país no século 20, mas só pode ser considerada um sucesso absoluto dentro de uma lógica desenvolvimentista que enxerga os impactos socioambientais e as vidas humanas apenas como parte de uma equação matemática.

Quase quatro décadas após sua construção, o país depende da energia gerada pela usina. Ao mesmo tempo, as Sete Quedas e inúmeras terras foram perdidas e quem foi diretamente afetado ainda convive com as consequências das obras – muitos ainda brigam na justiça para receber indenizações adequadas.

Catiane Matiello, doutoranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), ponderou em entrevista ao jornal Gazeta do Povo que dizer se Itaipu valeu a pena vai muito além dos números:

“A questão que devemos nos fazer não pode girar em torno de verificar se os efeitos benéficos de uma tecnologia compensam os seus prejuízos. Que tipo de progresso é esse, que exclui, marginaliza e destrói vidas? A lógica não pode continuar sendo essa. Devemos considerar que a questão não é o progresso em si, mas a diversidade de caminhos para chegar ao progresso entre os quais podemos escolher.”

São questões complexas, com as quais o Brasil ainda terá que lidar por muitos anos. Mas talvez casos como esse e o da Usina de Belo Monte deixem um lição valiosa: de que não podemos mais aceitar um modelo de desenvolvimento que não considere o meio ambiente e as pessoas em primeiro lugar, e investir para criar caminhos que tornem isso possível.

Saiba mais sobre o tema

Expropriados, Terra e Água: O Conflito de Itaipu (Capa Comum) – https://amzn.to/38cFXJa

O livro analisa a estratégia da empresa Itaipu Binacional para limpeza da área e como se estabeleceu a resistência organizada dos trabalhadores rurais, desencadeando um conflito de natureza social entre o Estado, representado pela Itaipu Binacional, e a população, representada pelos colonos expropriados. A resistência organizada gerou a constituição do Movimento Justiça e Terra e do Mastro, bases para a emergência dos movimentos sociais contemporâneos de resistência dos trabalhadores rurais e de luta pela terra. Saiba mais: https://amzn.to/38cFXJa

A Taipa da injustiça: Esbanjamento econômico, drama social e holocausto ecológico em Itaipu (Capa Comum) – https://amzn.to/2JLsRZW

Edição ampliada de Taipa da injustiça – a primeira edição data de 1980 –, de autoria do último preso político do regime militar, Juvêncio Mazzarollo. O autor relata os acontecimentos da Itaipu Binacional, denuncia corajosamente os custos econômicos, sociais e ambientais dessa obra. Também relata as vitórias dos movimentos de resistência, a fim de que as experiências possam frutificar em outras situações. Saiba mais: https://amzn.to/2JLsRZW

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones, no Youtube e em inglês no Yes, Summer!. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

Ver Comentários

  • Me lembro bem dos dias que precederam a inundação para formação do Lago de Itaipu e que fizeram Sete Quedas desaparecer. Infelizmente não me possível conhecê-la.

  • Foi o maior desastre ambiental que já existiu e ninguém fala sobre isso. Não falam dos milhares de animais que desapareceram afogados nem falam da nuvem de milhares de morcegos que invadiram os céus das cidades quando as águas inundaram suas cavernas. Deste desastre ambiental, todos se calam.

    • Ei James! Estamos falando sobre isso aqui :) E tem mta coisa publicada, como já faz uns anos, acho que fica no esquecimento mesmo, infelizmente, não deveria ser esquecido jamais...

  • Muito boa a matéria. Parabéns pela pesquisa. Eu conheci 7 Quedas poucas semanas antes de fecharem. Muito triste o que o ser humano faz com o planeta!

    • Olá Mila, obrigada pela comentário! Pelo menos você teve a chance de conhecer as 7 quedas! Espero que algum dia a humanidade aprenda :)

      Abraços!

  • A autora é tendenciosa, insulta de "ditadura" o Regime Militar Democrático, que livrou o Brasil de uma verdadeira ditadura comunista que aconteceria um mês após a contra-revolução.
    Entretanto, paradoxalmente reconhece e releva a importância do grande avanço alcançado durante os governos militares, e a pergunta que fica é a seguinte: em qual ditadura algum país se beneficiou tecnológica, logística, social, economicamente, em segurança, educação, saúde, emprego, trabalho e renda? Que eu saiba, nenhum, pelo contrário, o que se vê nesses países é só destruição, opressão e violação aos direitos humanos.
    E ademais, o Sistema de Governo foi tão verdadeiramente Democrático. que elegeu 5 Presidentes de verdade, ainda que indiretamente, pelo Congresso, que na época era confiável, tendo sido protagonista, junto com o povo nas ruas aos milhões, da Intervenção Cívico Militar no governo comunista do Vice João Goulart.
    O então Presidente Jânio Quadro, eleito nas urnas, foi obrigado a renunciar pelo que denominou de "Forças ocultas", que hoje sabemos exatamente quais eram, sem dúvida, as comunistas.
    Quanto à questão colocada pela Tecnóloga Catiane, o que foi considerado foi o gigantesco potencial energético existente nas condições geográficas locais. Mas as consequências sociais deveriam sim serem revistas e equacionadas, com as devidas indenizações e realocações dos grupos atingidos, ninguém deveria ficar de fora disso, faz parte da elevada sensibilidade do novo Presidente Bolsonaro, para cuidar disso. Já quanto às ecológicas, a própria Natureza deve-se encarregar da regeneração, para isso não vai faltar área no entorno.

  • O Parque de Sete Quedas era o nosso quintal. Cresci indo ao parque para fazer piqueniques com minha família quase todo final de semana.
    Tenho muitas boas lembranças e ainda hoje quando me lembro que foi submersa doi muito. Era de uma riqueza infinita, flora e fauna abundantes e uma imensidao de agua e quedas que encantavam a todos que visitavam.
    Na época, diziam que se Itaipu fosse construída pouca mais de um quilometro abaixo do curso do rio, Sete Quedas não seriam submersas, mas não fizeram, pois aumentaria muito o custo da obra. Se é verdade eu não sei, mas era a conversa que ouvíamos. Nunca saberemos.
    O que restou foram as lembranças dos piqueniques das tardes de domigo.

  • Nosso patrimônio natural e biodiversidade sempre alvos de interesses econômicos. Isso não é novidade na história do Brasil, a História e o presente estão aí para mostrar isso. O desrespeito aos povos indígenas como um todo, desde o direito à vida até suas expressões. O mal que foi feito com essa construção não será reparado. Estejamos sempre atentos! Ótimo matéria, parabéns!

    • Imagina o tamanho!? Quando escrevia me bateu uma tristeza grande de não poder mais conhecer um lugar que devia ser sensacional.

  • Olá Natália

    Parabéns pelo texto e pelas reportagens históricas que nos brindou. Apenas gostaria de pontuar que poderia acrescentar em sua análise os programas ambientais que a Itaipu conduz desde sua criação, seja em relação ao meio-ambiente (inclusive com prêmios da ONU, programa Cultivando Água Boa), com os agricultores de toda a região Oeste, o cuidado com as comunidades indígenas de ambos os países, além das obras estruturantes (hospitais, escolas, estradas) e inclusive na cidade de Guaíra, que tentam de alguma maneira "diminuir" o impacto da barragem na população e no meio ambiente. Infelizmente, em função do assoreamento do lago de Itaipu, mesmo com toda a faixa de mata ciliar reflorestada em 200m a partir das margens do lago tanto no Brasil quanto no Paraguai para proteção do reservatório, a formação rochosa que constituía as quedas não existe mais. Por este motino é importante o seu alerta no final do texto, em relação aos impactos de novos empreendimentos sobre o meio ambiente e a população em geral.

    • Olá Everson, obrigada pelo comentário!

      Pois é, eu reconheço a importância da Itaipu hoje para a região e para o país como um todo e, afinal, o que está feito está feito. No entanto, acho que é importante a gente aprender com o passado para não voltarmos a repetir o mesmo erro no futuro, né? Acredito na capacidade humana, e na tecnologia que temos hj, para encontrar alternativas menos impactantes de geração energética...

      Um abraço!

  • Uau!!! Que texto! Que jornalismo!!!! Eu moro em Mato Grosso do Sul, vivi e trabalhei algum tempo próximo à região de fronteira e só tinha ouvido vagamente falar das Sete Quedas. E não tinha encontrado nenhum texto na Internet com tantos detalhes e com essa qualidade!!!!! Parabéns pelo trabalho informativo e capaz de provocar necessárias reflexões!

    • Obrigada, fico feliz que tenha gostado do texto! A história é bem surpreendente e complexa! Eu mesma não sabia dos detalhes até começar a pesquisar para o texto :)

      Um abraço!

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Natália Becattini

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