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Atlas: Itália

Visto, imigração e vários idiomas: as viagens antes da unificação italiana

É difícil imaginar uma Itália em que Roma não seja a capital e que não dê para ir de Nápoles para Milão sem passar por algumas fronteiras e alfândegas. Mas é que a Itália unificada como um país, com uma mesma língua e ocupando o território da “bota”, só foi conquistada em 1870. Antes disso, a península italiana era dividida em dezenas de cidades-Estado, repúblicas e reinos. Cada uma tinha sua própria moeda, leis e dialeto.

Ou seja, viajar pela Itália há 150 anos atrás significava ter que pedir vistos, passar por alfândegas e imigração. Circular de diligências e carruagens onde as linhas de trem de ferro ainda não haviam sido inauguradas. Essa é a história, da unificação italiana, que vamos contar nesse post.

A história da unificação italiana

O chamado Rissorgimento, ou unificação italiana, ocorreu entre 1815 e 1870. Foi o processo de disputas, acordos e guerras que fez com que todas aqueles reinos, ducados e cidades-Estado voltassem a ser um país só, como na época do Império Romano.

A Itália enquanto país não existia. Desde a queda do império romano, estava dividida entre repúblicas, ducados e reinos. Quando Napoleão foi derrotado, no século XIX, diversas regiões hoje italianas ficaram sob domínio estrangeiro, com casas reais da Áustria e da França com boa parte do poder, além de um enorme território do Papa, os Estados Papais, que iam de uma costa a outra, chegando até Bolonha.

Mapa Unificação Italiana História

Mapa com as divisões da Itália e as datas do processo de unificação italiana

Com mudanças econômicas, o surgimento das ferrovias que conectaram as pessoas e o aparecimento de movimentos políticos nacionalistas e figuras como Giuseppe Garibaldi, Giuseppe Mazzini, Vitor Emanuel II e o Conde de Cavour, conflitos para expulsar os estrangeiros e unir os territórios italianos ganharam força.

As guerras de independência ocorreram por mais de duas décadas, até a criação de um Estado único italiano. Oficialmente, em fevereiro de 1861 foi proclamado o Reino da Itália, com Vitor Emanuel II como governante de uma constituição liberal. Florença foi escolhida como a capital e também como a base para a língua do país.

Nessa época, só a região da Toscana se comunicava com a língua que hoje chamamos de italiano. E apenas 10% de todo o território conhecia o idioma. Foi só a partir da década de 1950 que o italiano padrão realmente ganhou força, com a alfabetização em massa da população e o surgimento da televisão. Os dialetos locais ainda são falados, muitas vezes em alternância com o italiano.

O reino Italiano ainda não tinha conquistado todo o território da península. No norte, a região do Vêneto ainda estava sob domínio Austríaco – só foi anexada em 1866, após a terceira guerra de independência.

charge sobre a unificação italiana

Charge de 1868 mostrando a dificuldade da luta pela unificação país contra o Papa

E no centro, os estados pontifícios ainda dominavam Roma e arredores. Foi só com a Guerra Franco-Prussiana, em que a França retirou tropas que apoiavam o Papa, que os italianos conseguiram entrar na cidade e terminar com os mais de mil anos de domínio da igreja. Em setembro de 1870, Roma torna-se finalmente a capital.

Roteiro de três anos na Itália de 160 atrás

Entre março de 1858 e junho de 1861, a escritora brasileira Nísia Floresta e sua filha Lívia viveram e viajaram pela Itália. Esse período compreende boa parte do processo de unificação da Itália: a Segunda Guerra de Independência, a união de boa parte dos ducados do norte do país (Lombardia, Toscana, Piemonte, Sardenha, entre outros), a conquista da Sicília e a proclamação do Reino da Itália.

Já pensou conhecer essa Itália? Quem saía de Paris, Nísia, precisava conseguir vistos para cada um dos ducados. A experiência rendeu o livro “Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia”, escrito por Nísia Floresta Brasileira Augusta em dois volumes, publicados em 1864 e 1872, em francês. Os livros só foram traduzidos para o português mais de um século depois.

Saiba mais: As narrativas de viagem Nisia Floresta, uma escritora esquecida

Nos primeiros seis meses de viagem, Nísia e Lívia visitaram Gênova, Livomo, Pisa, Roma e arredores; Nápoles e arredores; e Florença, Pistóia, Bolonha, Ferrara, Pádua e Veneza. Tanto em Roma como em Nápoles, ficaram cerca de um mês. Também dedicaram bastante tempo em Florença e Veneza. 

Sorrento Italia no seculo 19

Sorrento no século 19. Sommer, Giorgio 1834-1914)

Essa fase da viagem compreende o primeiro volume do livro, em que ela escreve como num diário, com comentários sobre as cidades, as pessoas e os monumentos, além da própria vida. 

Seguindo viagem, em setembro e outubro de 1858 elas partem para o norte. Visitam Verona, Turim, os lagos de Guarda e Maggiore. Depois, passam alguns dias na França e na Suíça, retornando à Itália por Gênova, em novembro.

De lá, seguem para Florença, onde vivem de dezembro até abril do ano seguinte. Depois, viajam para a Sicília e Grécia em abril e maio. Elas ainda voltam a viver em Florença por mais um mês, mas devido a um acidente de trem, seguem para um vilarejo em Piemonte, numa estação de cura. Ainda viajam até San Remo em dezembro de 1860, ficam lá por seis meses, e finalmente deixam a Itália. 

Esse período mais longo da viagem entra no segundo volume. Que trata também das questões da Unificação Italiana, com comentários sobre notícias da época e opiniões de pessoas que encontra no caminho. Vale notar que Nísia Floresta teria ficado amiga de Giuseppe Garibaldi um ano antes, na época da Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul. 

Obviamente, havia grandes diferenças culturais entre as regiões italianas: o Norte, da Lombardia e Piemonte, era rico e influenciado pela França. Desde aquela época a Toscana já atraía viajantes em busca das artes e da literatura. Roma, a capital, era a terra das ruínas e do domínio da Igreja. E o sul, Campânia e a Sicília, uma região mais quente e pobre. 

Nos livros de Nísia Floresta percebemos as dificuldades de, por exemplo, ir de Roma pra Florença. Você precisava passar pela imigração, ter a bagagem vistoriada, podia ter livros censurados e enfrentar a cobrança de propina de fiscais corruptos.

Presa no porto de Civitavecchia, em direção à Roma, Nísia Floresta escreve:

“Aqui em Civitavecchia, mais ainda que em Gênova e Livomo, sentimos as dificuldades que existem na Itália para os vistos e bagagens, dificuldade que aumenta quando entramos nos “estados pontifícios”. Uma multidão de viajantes de diferentes nações desembarcou conosco por volta de 8 horas da manhã, e onze horas não conseguíamos ainda nos livrar das formalidades exigidas aos viajantes, antes de deixá-los partir para Roma, esta Roma que tanto demoro a chegar! (…) É uma confusão de vozes dos funcionários, pedindo e devolvendo as bagagens após revistá-las, e tudo isso sem nenhuma organização e com uma lentidão desesperadora!”

As aventuras de turistas no século 19

Pode-se dizer que o conceito de turismo como o conhecemos surgiu em meados do século 19, com as excursões organizadas por Thomas Cook. E também de novas tecnologias de transporte e comunicação, como o trem de ferro e os navios a vapor, permitindo viagens mais rápidas e baratas.

É preciso entender como os trens e barcos rápidos, além de serviços como telégrafos, revolucionaram a realidade daquelas pessoas. Elas podiam ir e vir sem levar dias. Conseguiam receber cartas que antes precisavam de meses para chegar. Não é à toa que em 1870 Júlio Verne escreve a Volta ao Mundo em 80 dias, surpreso em como tudo isso se tornou possível.

No caso da Itália, como não era um país unificado, havia poucos percursos de trem. As viagens de Nísia Floresta compreendem exatamente o momento em que começam a ser inauguradas as primeiras estradas de ferro. A escritora também sofre um dos primeiros desastres de trem na Europa, num percurso de Susa a Turim, ferrovia inaugurada em 1854.

Era sete horas da manhã…

De repente um choque terrível, como se a terra caísse de sua base, seguido de um barulho infernal de duas máquinas que se quebravam ao chocar-se, jogou-nos violentamente uns contra os outros no vagão.

– “Misericórdia! Misericórdia!” gritavam as pessoas ao meu lado, paralisadas diante de uma morte iminente.

“Deus! Meus filhos!” gritei, achando que era meu último momento, porque tudo parecia acabado para meus companheiros do vagão e para mim.

Talvez tenha se passado um segundo dessa agonia indescritível. Depois, ao nos vermos ainda com vida, cada um procurou escapar do carro fatal. Impossível! As portas estavam fechadas com chave e ninguém chegava para nos socorrer.

Ligeira como um relâmpago, uma ideia atravessou o meu espírito. O teto do vagão que sentíamos quebrar sob a pressão do vagão do outro trem iria cair e nos esmagar!

Invocar o nome de minha santa mãe, pegar a valise na mão e me jogar pela janela do carro, tudo fiz num piscar de olhos.

Ao cair sobre dois corpos estendidos no fundo do pequeno vale, onde haviam se chocado os dois trens, pensei tê-los machucado, e embora aturdida com a queda e não me vendo ainda fora de perigo, tão perto dos vagões que despedaçavam-se, levantei e parei para examinar os dois corpos. Eram dois cadáveres queimados, desfigurados!

A infeliz mãe que seguindo meu exemplo acabara de saltar com os outros do vagão, perto de mim, e estava pálida como morta, levou-me para longe do funesto vagão, que logo se quebrou totalmente.

Reunidas a alguns passos dali aos passageiros que escaparam ao terrível desastre, conseguimos então descobrir o que o causara. O trem vindo de Turim pela mesma linha, e em grande velocidade, chocou-se contra o nosso sem que os maquinistas, que foram as primeiras vítimas, pudessem impedir, e o fogo das duas máquinas, passando para o vagão das bagagens, causou o incêndio que tornou mais lúgubre ainda a cena de horror!

Onde não havia trem, as pessoas viajavam com serviços de diligências ou contratavam carruagens particulares, puxadas a cavalo.

As diligências funcionavam como ônibus: eram carruagens grandes, com quatro rodas enormes e puxadas por quatro ou mais cavalos. Tinham pontos de parada, onde os cavalos podiam ser trocados. Os passageiros tinham onde descansar, nos “Hotel de Poste”. Também existiam lojinhas, que vendiam guias de viagem e outros serviços úteis.

A quantidade de pessoas que poderia ser levada ia de 6 a 30, dependendo do tamanho do carro. A velocidade ficava entre 8 km/h e 16 km/h, variando pela qualidade das estradas. 

“Em grande parte das viagens entre as cidades, Nísia usou o serviço de diligência, e os vetturinos, serviço muito popular na Itália”, explica Sônia Valéria Marinho Lúcio, pesquisadora que defendeu uma tese de doutorado sobre Nísia Floresta. Vetturinos eram motoristas particulares: o dono da carruagem se encarregava das trocas de cavalo, paradas e refeições.

Ainda, sempre havia a possibilidade de viajar diretamente, com o cavalo como montaria. Foi o que Nísia fez quando circulou por Atenas e Peleponeso.

Quer ler mais sobre a unificação da Itália e histórias do país?

O livro “O Leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, e o filme de mesmo nome são clássicos italianos que contam a história de um príncipe siciliano e seu sobrinho revolucionário. A história de pano de fundo é o exército de Garibaldi tomando o reino das Duas Sícilias. Mas o livro também discute as dinâmicas de velho e novo, mudança e permanência, assim como faz um belo retrato da aristocracia daquela época. Você consegue uma cópia aqui: https://amzn.to/3doLs8y.

O primeiro volume de “Três anos na Itália seguidos de uma viagem à Grécia”, de Nísia Floresta, não é encontrado facilmente. Foi publicado pela Editora da UFRN, em 1998, com tradução de Francisco das Chagas Pereira. Já o segundo volume, publicado em 2019 pela UFRN, tem o ebook gratuito disponibilizado pelo repositório da Universidade.

Os assinantes do nosso clube “Grandes Viajantes” recebem a edição de “Viagem a Sorrento”, uma das crônicas de Nísia Floresta incluídas no primeiro volume do livro. Essa é a única tradução da própria autora para o português, e foi publicada num jornal carioca em 1875.

sorrento grandes viajantes

Para traçar o roteiro de viagem pela Itália de Nísia Floresta, me baseei no Três anos na Itália, numa entrevista com a Professora Constância Lima Duarte, na tese de doutorado de Sônia Valéria Marinho Lúcio, “Uma Viajante Brasileira na Itália do Risorgimento”, e em pesquisas sobre as viagens no século 19.  A arte utilizada na capa do post e do livro está em domínio público: é de ArtTower por Pixabay 

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Luiza Antunes

Luiza Antunes é jornalista e escritora de viagens. É autora de mais de 800 artigos e reportagens sobre Viagem e Turismo. Estudou sobre Turismo Sustentável num Mestrado em Inovação Social em Portugal Atualmente mora na Inglaterra, quando não está viajando. Já teve casa nos Estados Unidos, Índia, Portugal e Alemanha, e já visitou mais de 50 países pelo mundo afora. Siga minhas viagens em @afluiza no Instagram.

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