Mineiro se denuncia pela boca. E não só pela vontade de comer frango com quiabo, arroz com pequi ou tutu de feijão, não importa onde no mundo ele esteja. O sotaque, ou melhor, o dialeto, entrega o mineiro assim que ele começa a falar.
Como todos que vivem numa bolha, durante anos eu jurei que não tinha sotaque, que falava igual a todo mundo. Até que, já na adolescência e além das montanhas de Minas, percebi que meu dialeto era a exceção por ali. “Caiu um trem no meu olho”, afirmei, enquanto tentava tirar o que provavelmente era um grão de areia. Um carioca, amigo da família, não perdoou: “Mas um trem inteiro?”.
Além do trem, que em Minas é qualquer coisa, mas raramente um trem mesmo – afinal eles entraram em extinção no Brasil – as outras duas expressões mineiras por excelência são o “uai” e o “sô”. A primeira eu garanto que falo a cada frase, seja numa conversa ao vivo ou num diálogo via Whatsapp. Pra mim, uai só não é vírgula porque é ponto de interrogação.
Já o sô eu usava com frequência, até que, também na adolescência, vi ele desaparecer aos poucos. Mas pode ser que ele ainda esteja aí, presente no meu dia a dia: foi só eu que parei de notá-lo, mais ou menos igual o ons, que eu jurava que não falava até perceber ele ali, escondido atrás do trem.
A piada, para qualquer pessoa que seja de Minas, é velha, mas precisa ser citada: num ponto de ônibus, um mineiro pergunta para o outro: ce sa ce es ons pas na savas? Para não versados no mineirês, traduzo: você sabe se esse ônibus passa na Savassi?
Vi esse meme quando morava em São Paulo. E achei um absurdo. “Como assim, ons? Tudo bem, nós encurtamos palavras, mas ons? Claro que não! Ninguém fala isso”. Até que, após uma visita familiar, eu peguei uma carona para a rodoviária com um tio. E ele não parou de reclamar do motorista do ons que estava na pista ao lado. Diante de tamanha evidência e de um número absurdo de ons e uais na mesma frase, abracei mais uma vez o mineirês que vive em mim.
E isso para não falar das expressões que eu sempre julguei serem comuns em todo Brasil, mas que se revelaram típicas daqui. Cresci com meus avós me dizendo para não caçar confusão; aprendi cedo que não dava conta das provas de matemática; descobri que mexer é sinônimo de trabalhar com algo; que a vogal escrita não é necessariamente a que precisa ser pronunciada (por aqui quase nunca é). E custei a perceber que certas partes do estado têm verbos próprios, como o tarrar: “Eu tarra fazendo não sei quê”.
Minas é muitas, diria Guimarães Rosa, e na divisa ganha outros toques ao se misturar com o jeito dos estados vizinhos. Minas é Conceição do Mato Dentro e Maria da Fé; é Milho Verde e Três Corações. É gente na calçada de casa, batendo papo em cadeiras de plástico. É praça de cidade de interior e igreja no topo da colina, do lado da colina e no pé da colina. Minas é metrópole, mas sem perder o jeitão de interior jamais. Minas só não é mar, mas já foi. E, como dizem por aí, pior pro mar, que deixou de banhar Minas.
Mas não vamos perder o ons, digo, o fio da meada: não há como nascer pelas bandas de cá sem ter o dom para encurtar palavras. “Mineiro é isso, sô! Come as sílabas para não morrer pela boca. Faz economia de palavras para não gastar saliva. Fala manso para quebrar as resistências do interlocutor. Sonega letras para economizar palavras. De vossa mercê, passa pra vossemecê, vossência, vosmecê, você, ocê, cê e, num demora muito, usará só o acento circunflexo!”, escreveu o mineiro Frei Betto.
Uma definição ainda melhor para essa preguiça linguística, que é marca registrada do mineiro, circula há anos pelo Facebook: “Na verdade, o mineiro é o baiano linguístico. A preguiça chegou aqui e armou rede. O mineiro não pronuncia uma palavra completa nem com uma arma apontada para a cabeça”.
Essa frase costuma ser atribuída a Carlos Drummond de Andrade. Eu, que mineiro sou, desconfiei. E descobri que o texto em questão é daqueles de autoria duvidosa. Não que o autor real tenha pretendido permanecer incógnito, mas, numa era em que viralização deixou de ser sinônimo de intervenção da OMS, é difícil saber se um texto é do Veríssimo, da Clarice Lispector ou só filosofia de qualquer buteco de esquina. Em todo caso, parece que o autor é um certo Felipe Peixoto Braga Netto. Mas não ponho minha mão no fogo por isso não – vai que é do Drummond?
Dele mesmo é outra frase, ou melhor, poema: “Só mineiros sabem. E não dizem nem a si mesmos o irrevelável segredo chamado Minas”. Já o outro Drummond, o Roberto, disse certa vez que “Minas Gerais foi escrita por Deus, Diabo, Shakespeare, Tolstoi e por aí.”
Pode ser, Roberto. Mas aqui até eles resolveram encurtar palavras.
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Que tes gosto de lê sô…
Parabéns
Que tex gosto de lê…….
Parabéns
Ahhhh Minas Gerais…
Saudades? O tempo todo! Meu mundo é Minas.
Mineira da gema, pensando não ter sotaque (todos pensam não ter) por acaso encontrei com algumas pessoas almoçando em um restaurante em Göteborg, vi que estavam falando português… Eu louca para conversar na minha língua, fui me apresentar. De cara eles falaram… E aí mineira! Você sai de Minas, mas Minas jamais sai de você!
hahaha. Todo mundo acha que não tem sotaque, né?
Abraço e obrigado pelo comentário.
Parabens Rafa. Me senti em Minas outra vez. Obrigada pela belez…
Poxa, fico feliz. 🙂
Obrigado pelo comentário.
Tenho grande encanto por Minas Gerais e muita vontade de conhecer as cidades históricas. Ainda vou!
Vale muito, Aline.
Minas é linda, é aconchegante, é hospitaleira, é montanhas, é fé,é comida boa e muito mais
É isso, Amilcar. 🙂
Abraço e obrigado pelo comentário.
Fui pra BH, Ouro preto pela primeira vez fazem 2 semanas, e o sotaque de vcs é uma gracinha hahahha, mas confesso que teve algumas vezes que tive que perguntar 3 vezes para entender o que os mineirinhos estavam dizendo hahahahahaha foi hilário!
Muito bom Rafael! Sou do Sul, moro no Rio e aprecio sotaques de vários lugares, especialmente de Minas pois tenho bons amigos por aí. Trabalhei por 4 anos com um mineiro da região de Divinópolis ao meu lado aqui no Rio, e seu relato está perfeito, inúmeras vezes ouvi expressões pouco comuns como “não dá conta não”, e “fulano mexe com isso”.
Costumava brincar para explicar aos mais jovens que a França é o maior país da Europa (no quesito tamanho geográfico) com a licença poética de desconsiderar a Rússia e Ucrânia. A França é o maior país, seguido de Espanha, Suécia, Noruega, Alemanha, e assim por diante. E o que Minas tem a ver com isso? Minas é maior que a França! Tem noção do que é isso? Obviamente que isto é apenas uma questão geográfica. Não tem como comparar a quantidade de pessoas – de 20 milhões para 67 milhões – e nem o PIB de cada um.
E é biscoito.
Certamente.
Minas Gerais tem uma coisa tão própria, uma coisa que trás uma dorzinha no fundo de quem saiu de lá. Dor chata que por vezes diminui mas nunca some.
Minas é um encanto para um monte de gente, mas não pra todo mundo. Fazer o quê? Se nem a Cidade Maravilhosa é, nossas cidades com seus tesouros escondidos também não haveriam de ser. Nem todo mundo gosta do friozinho de uma manhã de maio ou junho onde só se vê a névoa, de se esquentar a noite perto de um fogão a lenha ou tomando uma com os amigos e um violão, de poder ir a pé para boa parte de seus compromissos, de estar cercado de uma história que não é menosprezada e nem esquecida, de se sentir em uma cidade pequena mesmo nas maiores cidades, de subir a montanha e passar um dia em um sítio ou fazenda que sempre alguém na família (das mais simples as mais abastadas) tem. Tem gente que roda o mundo para encontrar algum lugar que lhes dê paz, eu quero rodar o mundo também mas, para mim, assim como para o Marcelo Camelo, o melhor remédio para quando falta a paz é Minas Gerais, e nada de doses homeopáticas.