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Atlas: México

Por que amamos Frida Kahlo?

Preciso dizer que, não faz muito tempo, Frida Kahlo era para mim uma estampa legal em uma camiseta. Pouco conhecia de sua história além do que sabe o senso comum. Sua imagem me inspirava fascínio e admiração, mas daquele tipo que só arranha a superfície de toda a complexidade de sua vida e caráter. Se ela se despertasse hoje, talvez se assustaria ao ver sua imagem transformada em mais um símbolo da subversão mercadológica. Produtos com seu rosto estampado enchem as prateleiras ao lado de Che Guevaras e Ramones. Suas fotos e autorretratos estampam ecobags e fundos de tela de smartphones. O meu incluso.

Frida é um fenômeno pop moderno que até hoje cativa por sua personalidade única, ideias e originalidade. E por isso foi fácil apaixonar-me por ela. Me reconheci em sua dor, suas feridas e em sua luta. Quando passeava pelos autorretratos expostos no Museu Casa de Frida Kahlo, na Cidade do México, não podia deixar de pensar que ela era para mim um exemplo de mulher e de feminino. E tentava entender por que nunca tinha buscado conhecer sua história mais a fundo. Nos corredores daquele museu, repleto de cores e de palavras que ela tirava do fundo de sua alma, aproximei-me ainda mais de Frida, a ponto de hoje considerá-la uma amiga imaginária e conselheira. Frida um dia se perguntou se podia criar verbos. Também quero criar o meu: me frido.

“¿Se pueden inventar verbos? Quiero decirte uno: yo te cielo, así mis alas se extienden enormes para amarte sin medida… somos de las misma materia, de las mismas ondas…”

Como nós, ela também se incomodava com sua aparência, mas abraçou aquilo que chamam de defeitos e, ao invés de escondê-los e camuflá-los, os expôs para o mundo em seus quadros. Foi autêntica em todas as áreas de sua vida. Conviveu com as sequelas da poliomielite e do acidente que sofreu ainda adolescente. Enfatizou suas sobrancelhas e bigode desafiando padrões irreais que insistem que tudo em nosso corpo seja artificial. Deu volta nesses padrões e criou o seu próprio, mostrando a todos a beleza que havia em si. E quem não pode ver tal beleza está cego na alma.

“La parte más importante del cuerpo es el cerebro. De mi rostro me gustan mis cejas y mis ojos. Aparte de eso no me gusta nada más. Mi cabeza es demasiado pequeña. Mis pechos y mis genitales son corrientes. Del sexo opuesto, tengo el bigote y el rostro en general”.

Frida Khalo em editorial para a Vogue

Frida em editorial de moda para a revista Vogue

Coloriu a vida com seus vestidos e sua moda peculiar, repleta de flores e bordados, e usou sua forma de vestir como mais uma de suas expressões artísticas e de sua identidade. E foi nessa moda que Frida encontrou o espaço para abraçar suas raízes indígenas e valorizar a arte dos povos originários do México de forma pioneira. Suas roupas, escolhidas a dedo, traziam os bordados do povo do qual Frida carregava o sangue por parte de sua mãe. Se tornou a principal embaixadora do indigenismo, movimento baseado na valorização da história e cultura de um México ancestral. E esse não foi o único padrão estético que Frida questionou com sua roupa. Em diversas ocasiões, adotou um visual andrógino, usando calças e camisas masculinas em uma época em que era tabu que mulheres se vestissem assim.

“Al final del día, podemos aguantar mucho más de lo que pensamos que podemos”

Suas cores se contrastavam com as dores que viveu de forma tão intensa quanto suas alegrias. Aos 18 anos, Frida sofreu um acidente que mudou por completo sua vida. O ônibus em que viajava foi atingido por um bonde. O impacto lhe quebrou as costelas, a coluna em três pontos, a perna direita em 11, o osso pélvico e a clavícula. Deslocou o pé direito e o ombro esquerdo e foi perfurada por uma barra de ferro na altura das cadeiras.

Passou três meses internada e a vida inteira recuperando-se do acidente. De acordo com Gerry Souter, autor do livro Frida Kahlo: Beneath the Mirror, suas roupas foram arrancadas pela força do impacto, deixando-a exposta no meio da rua. Um saco de pó de ouro que outro passageiro levava no ônibus se abriu e espalhou seu conteúdo sobre seu sangue, em uma triste alegoria do que seria sua vida dali em diante: cor e tinta para cobrir suas feridas físicas e emocionais.

Frida Khalo

“Pies, ¿para qué os quiero si tengo alas para volar?”

Duas das sequelas do acidente causaram especial sofrimento em Frida. O primeiro foi a impossibilidade de gerar filhos, algo que desejava profundamente. Sofreu com cada aborto e retratou esse sofrimento em seu quadro La Cesaria. O segundo foi a fratura do pé direito, que o deixou menor que o esquerdo. Frida mancou durante toda a vida e tentou camuflar a diferença com sapatos especiais, com solados de tamanhos diferentes.

Ela sofreu também com os implantes ósseos na coluna vertebral e as inflamações decorrentes deles. Já em seus últimos anos de vida, teve grangrena nos dedos dos pés e teve que amputá-los. Mais tarde, amputou também a perna direita na altura do joelho. Frida nunca olhou para o episódio com raiva do destino. Aceitou o que o acaso guardava para ela e soube transformar a experiência de quase morte em algo produtivo: foram nos anos de convalescênça que ela começou sua carreira na pintura.

“Haz el amor, date un baño, y haz el amor otra vez”.

Frida viveu e amou intensamente. A tudo que fazia, se entregava de alma. E assim foram com suas paixões. O pintor Diego Rivera, com quem foi casada até o fim da vida, foi seu grande e doentio amor, mas não o único. Teve diversos romances ao longo da vida, com homens e mulheres, já que não negava sua bissexualidade. Entre eles, destaca-se o revolucionário marxista russo León Trotsky, a quem ela e Diego acolheram em sua casa com sua mulher.

“Yo sufrí dos accidentes graves en mi vida: uno en el que un autobús me tumbó al suelo, el otro es Diego. Diego fue de lejos el peor.

Tenho em meu diário uma frase de Frida Kahlo anotada em letras maiúsculas: “Onde não se pode amar não se demore”, diz o aviso, como se uma amiga que aconselhasse a outra. A frase soa também como um conselho que Frida dava a si mesma. Sua relação aparentemente aberta não estava calcada no respeito e liberdades mútuas. Frida aceitava com sofrimento as traições de Diego e as aceitava com resignação, para não perdê-lo. Envolveu-se também com homens e mulheres, muito mais como uma forma de vingar-se do marido que por exercer livremente sua sexualidade. Diego chegou a enganá-la com sua própria irmã. Quando o romance foi descoberto, Frida colocou um fim no relacionamento, mas o perdoou um ano depois e tornou a casar-se com ele.

Frida Khalo e Diego Rivera

Frida Kahlo e Diego Rivera

“Abandona a tu Diego Rivera”

Ao mesmo tempo em que soube questionar padrões estéticos e de comportamentos de sua época, com atitudes que ainda são consideradas progressistas mais de um século depois de seu nascimento, ela também se viu entrelaçada nas teias de um relacionamento abusivo e da dependência emocional. De acordo com uma entrevista de Magali Tercero, presidente do Mexican PEN Centre (uma organização de escritores, dramaturgos e editores) e autora de Frida Kahlo. Una mirada crítica (2012), para o Huffington Post: “em seus diários e correspondência está muito claro a quantidade de humilhações inaceitáveis que lhe infligiu Diego Rivera, a quem hoje poderíamos considerar um misógino, alguém que manipulava os afetos de Frida para tê-la sempre ligada a ele”.

Frida prendeu-se a uma situação que a fazia sofrer por não poder imaginar uma vida sem o parceiro. O problema com os ícones e heróis é que os despimos de humanidade e os esvaziamos de contradições. Mas os ídolos de carne e osso não são a mensagem que queremos passar quando exibimos suas imagens em nossas camisetas. Frida era uma mulher como todas nós, com suas fortalezas e fragilidades. Fragilidades que ela também soube reconhecer, deixando-nos o precioso aviso para que não a tomássemos como exemplo. E isso passa longe de desmoralizar sua imagem, sua contribuição para o feminismo e nossa admiração por ela. Ao contrário, a torna mais próxima de todas nós. E que a gente saiba escutá-la: abandonemos todas a nossos Diegos Riveras.

Foto destacada: Shutterstock

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones, no Youtube e em inglês no Yes, Summer!. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

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8 comentários sobre o texto “Por que amamos Frida Kahlo?

  1. Maravilhoso texto que mostra que as contradições humanas e suas nuances relacionadas ao amor doentio são inexplicáveis.Como uma mulher que é símbolo do feminismo se deixava torturar psicologicamente,sendo humilhada por um homem machista e não conseguia se desvincular dele,mantendo uma dependência emocional tão grande? talvez isso explique hoje o por que de muitas mulheres não conseguirem se livar da violência doméstica…

  2. Obrigada por escrever tão bonito sobre essa mulher, que de fato esteve à frente do seu tempo. Apenas uma correção (certamente por andar escribiendo en español rs). Onde está “mas”, deve ser “mais”, na frase “E tentava entender por que nunca tinha buscado conhecer sua história mas a fundo.”

    Sucesso!
    Marcia

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