“O pior momento é quando o ônibus chega na rodoviária. Sempre parece que meu filho vai estar lá, como ele fazia antes de partir”. A frase foi dita assim, sem contexto nem explicação, pela senhora que tinha viajado as últimas quatro horas na poltrona ao meu lado, até então com um boa tarde e nada mais. Foi só nos últimos minutos – quando já nos aproximávamos do destino – que a conversa começou. Guardei meu livro e perguntei o óbvio.
Ela tem 82 anos, mas passou o último deles sem o único filho, que foi assassinado pelo vizinho. “Foram muitas facadas, ele morreu na hora”, contou ela. O assassino, que era conhecido da vítima, foi preso. Não que isso ajude. “Ele é de uma família poderosa, com dinheiro. Querem soltá-lo de todo jeito, mas por enquanto não conseguiram”.
Ela mora em outra cidade, mas vez ou outra pega um ônibus e enfrenta cinco horas de estrada para ver o filho. O túmulo do filho. Daquela vez, o motivo era especial: o Dia de Finados. “O primeiro desde que ele se foi”, conta. E acrescenta: “Difícil vai ser na rodoviária”.
Ela tem uma neta, que mora fora, mas faz questão de visitar a vó sempre que possível. E amigos que não acabam mais. Uma até mora com ela e serve de companhia de todos os dias. “Mas agora ela vai se mudar para o interior, devo ficar sozinha, meu marido já se foi há muitos anos. Tenho meus cachorros, mas essa amiga vai fazer falta”, diz ela.
“Ele estava construindo uma casa, estava feliz. Vivia me chamando para visitá-lo. Foi tudo repentino, ainda não me acostumei. Filhos se preparam para o dia em que perderão seus pais, mas o contrário? Ninguém espera isso. Ninguém quer viver isso”.
“Quando acontece, a gente percebe que mudou, para sempre. Que a partir daí a vida vai ser um relógio, um cronômetro até a próxima grande notícia ruim. De certa forma a gente morre também. E reaprende a viver, feliz, mas com um buraco, uma ausência. Nada fica igual, nenhuma lembrança é mais forte que a do último encontro, no portão”. Ela me olhava, em silêncio. “Quem você perdeu?”, perguntou.
Conversamos mais. Ela me contou que já fez grandes amizades em viagens de ônibus. “Há uns meses conheci uma estudante, um pouco mais nova que você, durante essa viagem. Conversamos o tempo todo. O ônibus atrasou, chegou tão tarde que ela teria que ir para um hotel. Chamei ela para ficar aquela noite lá em casa. Tomou café comigo e no dia seguinte foi embora, para o aeroporto. Depois disso ela já até voltou, trouxe a família toda para me conhecer, me liga frequentemente”.
E teve puxão de orelha: “A gente poderia ter vindo conversando a viagem toda, mas você não largava esse livro”, disse, querendo saber qual era e se era bom. Entramos na cidade. “Minha família é toda daqui. Está vendo aquela loja? São parentes. Distantes, mas são. Eu nasci aqui, nos arredores, mas fui para a capital. Depois meu filho resolveu pegar a estrada contrária”.
Estamos quase na rodoviária.
Os últimos minutos foram em silêncio, assim como a despedida, com um abraço, enquanto pegávamos as malas. Duas histórias que se cruzaram, provavelmente para nunca mais.
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Na literatura de fantasia, para ser mais exato, nos livros de J.K. Rowling, existe um animal mágico chamado testrálio. São cavalos negros, com asas de morcego e corpo esquelético. É difícil saber de onde a autora de Harry Potter achou a inspiração para esses seres, embora existam evidências de que foi da mitologia celta. Não é a aparência dos testrálios que os torna interessantes, mas quase o oposto: eles são invisíveis para qualquer pessoa que não tenha sido profundamente tocada pela morte.
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Adorei…Qualquer perda é terrível, ninguém nem nada preenche o vazio de de uma saudade. Encontramos os testrálios quando nos permitimos sentir a dor alheia e o nascimento de uma solidariedade muda e intima.
Exato, Fatima.
Abraço e obrigado pelo comentário.
Nossa, Rafa! Que texto. Enchi os olhos de lágrimas. Os trestálios são um grande símbolo de empatia presente nos livros do HP <3
Que bom que gostou, Daniele!
Abraço e obrigado pelo comentário.
Parabéns pelo texto!!
Adorei a referência a HP e me emocionei muito lendo
Assim como acontece na saga com Harry e Luna, os testrálios que vemos nos fazem nos identificar e sentir empatia pelos outros
São símbolos de empatia, Rodolfo. 🙂
Abraço e obrigado pelo comentário.