Um enorme dragão amarelo parecia voar acima das cabeças de uma multidão. Essa é a primeira imagem que tive do Ano Novo Chinês – e, de quebra, uma das primeiras vezes que me deparei com o outro lado do mundo. A fotografia estava impressa numa enciclopédia, algo que as novas gerações devem considerar completamente incompreensível, tipo disquetes e porta CDs.
Não me lembro bem o ano, mas foi em meados da década de 1990, quando escrever sobre o Ano Novo Chinês virou trabalho da escola. Acostumado com Réveillons que eram comemorados sempre com fogos de artifício e jantares em família, me surpreendi ao descobrir que numa parte do mundo – na realidade, numa grande parte do mundo – a celebração era completamente diferente. E, ainda mais inacreditável, em outra data.
Como assim cada ano tem um animal de símbolo? E o que o dragão significa? Mas que história é essa que o Ano Novo começa no meio de janeiro ou até em fevereiro? Essas perguntas deixavam claro o tamanho do fascínio que descobrir outros mundos desperta numa criança.
Ano Novo chinês em Macau
Ver de perto as comemorações do Ano Novo Chinês se tornou um sonho desde então, mas pouco fiz para realizá-lo. A chance, quando surgiu, teve uma grande dose de acaso. Uma ótima promoção de passagens aéreas para a China me levou para Xangai, mas foi só meses após a compra dos bilhetes – e quando nos preparávamos para viagem – que descobrimos que a aventura seria em plena festividade.
Depois da surpresa veio o medo. O Ano Novo chinês é mais que um dragão voando, li em vários lugares. É também a maior migração em massa da Terra, período em que 700 milhões de chineses lotam rodoviárias, estações de trem e aeroportos, multidões sem fim que fazem as malas e viajam para rever a parentada que também beira ao infinito.
Um mar de gente torna todo passeio complicado e obriga que reservas sejam feitas com meses de antecedência; aumenta preços, diminui ofertas e complica viagens. É tanta, mas tanta gente, que li em mais de um lugar um conselho: escolha outra época para viajar. Com as passagens já compradas e feliz por finalmente ver de perto o Ano Novo chinês, ignorei o aviso.
Cidade Proibida, em Pequim, lotada durante o Ano Novo chinês
Para aproveitar o melhor da viagem no meio do caos aéreo, ferroviário e rodoviário, montamos o roteiro transformando o Ano Novo em atração central. Para isso, resolvemos cruzar a China, de norte a sul, no meio da confusão, tudo para estar nos lugares certos na hora certa.
Foi fácil escolher o endereço onde passaríamos a “virada”, que em 2018, o ano do cachorro, foi no dia 16 de fevereiro. Iríamos para Hong Kong, que nessa data organiza o maior show de fogos do mundo. Sei que a minha cabeça nerd pode ter exagerado as coisas, mas eu imaginava algo parecido com a festa de aniversário do Bilbo, em “O Senhor dos Anéis” – fogos mágicos em forma de dragões que perseguiriam hobbits, digo, turistas.
Shows, mais dragões e cidades totalmente decoradas completavam a lista de atrações de uma viagem que prometia ser fantástica.
E foi. Desde a primeira parada do roteiro, em Xangai. A Cidade Velha, que cresceu entre muralhas e jardins e hoje é uma série de becos, casarões históricos e lojinhas, seria interessante por si só. E ficou ainda mais ao ser toda decorada para a festa. Milhares de imagens de cachorros estavam penduradas por todos os lados; luzes, lanternas e uma massa de gente davam o tom da festa. A cena se repetiu nas cidades seguintes. Pequim, Macau, Hong Kong, Guilin e Yangshuo também estavam totalmente decoradas, cachorros por todo lado.
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Apesar da beleza, nem tudo saiu como esperado. A viagem foi planejada ao redor do Ano Novo, mas no fim das contas muita coisa da festividade deu errado. O show de fogos de Hong Kong – que tinha sido o motivador por trás da organização de um roteiro meio louco – foi cancelado poucos dias antes da festa, por conta de um acidente.
Sem ele, restavam as paradas e os dragões, que deram as caras pela primeira vez em Macau, antiga colônia portuguesa que fica a uma hora de barco de Hong Kong. Do alto da Igreja de São Paulo, onde placas em português contrastam com uma cidade chinesa, um enorme dragão amarelo dançava escadaria abaixo. E foi ali que o menino da quarta série que imaginava dragões se deu por satisfeito – só aquele momento, totalmente inesperado, valeu a viagem inteira.
Na empolgação, naquela mesma noite esperamos, por quase três horas e em pé, a passagem da parada de Ano Novo de Hong Kong. Enquanto o dragão demorava, pequenos carros alegóricos passavam, com o desfile de centenas de hongkongers. Vendida pelo comitê de marketing local como uma das grandes festas do mundo, a parada rivalizava com o carnaval brasileiro. Com o carnaval de pequenas cidades e sem tradição nenhuma na festa, veja bem. Foram três horas tão decepcionantes que, quando o ponto alto enfim chegou, mais da metade da multidão já tinha ido embora pra casa – com dores na lombar, aposto.
Viagens só são perfeitas em retrospecto, quando olhamos para elas pelo retrovisor da nostalgia. Na vida real, problemas, perrengues e decepções são comuns nas férias – da mesma forma que ocorre em qualquer outra época da vida. E planejar toda uma viagem para estar em determinado lugar num dia e hora específicos só por causa de um show de fogos que depois é cancelado e por uma parada completamente sem graça me parece uma decepção considerável. Ainda mais quando, para isso, você assume gastos maiores e um roteiro infinitamente mais louco.
Mas se a nostalgia existe é porque ela tem sentido. Afinal, passada a raiva, o que fica na memória são os momentos bons, as surpresas – tipo as cidades decoradas e o desfile em Macau – e as memórias que compartilhamos com pessoas queridas. Me arrisco a dizer que até aquele momento, há mais de 20 anos, debruçado numa enciclopédia e aprendendo sobre o Ano Novo chinês, só se transformou numa boa memória com o passar do tempo. No dia mesmo, provavelmente o que eu mais queria fazer era fechar o livro, ignorar as tarefas e jogar videogame.
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