Meus pais e avós me criaram cheio de sonhos de conhecer o mundo, mas agora luto para convencê-los de que é preciso ficar em casa. Em meio a uma pandemia global que não se via há gerações, me pego tentando persuadir gente com várias décadas de vida de que essa não é uma crise qualquer – é um acontecimento que vai definir o mundo pelos próximos 50 anos. E que oferece um número ilimitado de riscos, principalmente para certos grupos.
Absolutamente neurótico. É assim que estou antes de completar uma semana de confinamento. Meu problema não é medo de pegar COVID-19, a doença transmitida pelo novo coronavírus. É pegar, nem sentir isso e acabar transmitindo para pessoas do grupo de risco, em especial aquelas que amo.
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A preocupação é tanta que pensei duas vezes antes de visitar os meus avós, algo que normalmente faço dia sim, outro também. Fui no começo da semana, mas para isso medi (várias vezes) minha temperatura, permaneci distante durante a visita, evitando abraços e beijos, lavei as mãos uma dezena de vezes e limpei cuidadosamente todas as superfícies em que toquei – tão preocupado em apagar digitais quanto um serial killer após um dia de trabalho.
Enquanto eu dominava o medo de contaminação e pensava, passo a passo, nos cuidados necessários para estar ali, descobri que minha avó tinha ido, menos de 24 horas antes, num hospital lotado – e para fazer um exame de rotina que nós já tínhamos concordado adiar. Foi sozinha porque sabia que se avisasse a família não iria jamais, como ela mesma admitiu. Dei uma bronca daquelas e coloquei todos de quarentena, com álcool em gel suficiente e orientações de cuidados mil. Ufa!
Corta para o dia seguinte, quando dei uma última saída rápida de casa, atento para evitar aglomerações e coçando a alma para não coçar o rosto. Enquanto eu deixava o medo de contaminação me dominar, vi um grupo de octogenários batendo um papo animado num café no centro de Belo Horizonte, perfeitas ilhas numa cidade fantasma. Não eram os únicos, como descobri pela minha avó dias depois – a mesma que fez peraltice na segunda, mas que na sexta, já convencida da gravidade do problema, resolveu dedurar meu pai: “Ele estava no bar ontem. Ligou aqui e me contou”.
Não esperei nem a notícia descer: mandei dezenas de mensagens, com argumentos que variavam entre as taxas de mortalidade, a crise sanitária na Itália, as comorbidades e o risco de infectar outros. Também apelei para a chantagem emocional, confesso, embora tenha preferido guardar na manga algumas cartas desse tipo (ouviu, pai?).
Ele jurou que ia se comportar, mas daí a agir assim é outra história, né? É preciso vigiar de perto esses senhores desobedientes…
-Bar, pai? Com o prefeito fechando a cidade toda, com o mundo de ponta cabeça, você vai num bar? NUM BAR?
-Fui por isso, pra me despedir. Amanhã, com tudo fechado, é que não vou mesmo.
Bufando de raiva, contei a história em grupos de amigos – e ganhei atenção imediata. “Meu pai também tava num bar ontem, se despedindo”, disse um. “O meu se despede do bar o tempo todo, não tá nem aí. Vai jogar no bicho, tomar cerveja, bater papo com os amigos”, disse outra. “E os meus, que vão se encontrar com os amigos e fazem até roda de chimarrão”, diz um relato que vem do sul. “Acho que consegui assustar minha mãe. Compartilhei com ela uma fake news de que o governo vai suspender a aposentadoria dos idosos que não ficarem em casa”, falou uma terceira, admitindo uma tática, digamos, pouco ortodoxa.
Enquanto isso, outros relatos que chegam do sul deixam minha namorada apavorada:
-Pai, tu vai na feirinha amanhã? – pergunta ela.
-Vou cedo – responde meu sogro.
-Pai, pelo amor de Deus, para com isso. Tu vai se arriscar pra comprar queijo, é isso?
-Não, claro que não. Mel e bolachinhas. Queijo ainda tem aqui.
Em comum entre esses pais e mães estão exatamente os tais fatores de risco da COVID-19: idade na casa dos 60 ou acima disso, hipertensão, diabetes e hábitos pouco saudáveis, seja com ou sem pandemia.
Depois do desabafo, amigos passaram a me mandar textos, memes, áudios e vídeos sobre o assunto, uma onda de conexão, empatia e, por que não, humor – acho que vou criar um grupo no WhastApp: Filhos e Netos Preocupados Tomam Providências com Progenitores Sem Juízo
Só hoje já recebi o texto de um site português relatando que a coisa por lá está no mesmo nível, com idosos levando filhos à beira de um ataque de nervos; o áudio de um homem dizendo que o Rio de Janeiro parece uma cena de walking velho, só com idosos nas ruas; um meme com a velha surda dA Praça É Nossa trocando “evitar aglomeração” por “ir no atacadão”; um vídeo gravado em Santa Maria (RS) que mostra a prefeitura retirando bancos de um calçadão enquanto uma mulher comenta que é “absurdo ter que fazer isso pros idosos ficarem em casa”; a notícia de que a prefeitura de Três Rios (RJ) removeu de uma praça mesas de concreto onde eles costumam jogar cartas. E relatos mil de filhos desesperados porque não conseguem manter seus pais e avós quietinhos em casa.
Aprendi há tempos que o suceder de décadas inverte papéis. Nossos criadores, aqueles que cuidaram da gente e que até hoje são nosso porto seguro, repentinamente passam a demandar os mesmos cuidados – e devolver a dor de cabeça que demos um dia.
Mas me arrisco a dizer que poucas vezes a humanidade viu uma inversão de papéis coletiva deste tamanho, se é que algo dessas proporções já aconteceu antes.
– Mas tá todo mundo saindo, minha filha. É só um bingo na casa de fulano. Toda a turma vai, meu filho. Não é bar, não tem vírus desconhecido, só vamos nos encontrar na casa de um amigo.
– VOCÊ NÃO É TODO MUNDO. Eu não sou filho de todo mundo! Não sou filho da turma toda! Então se todo mundo pular da ponte você vai também, é? Você não tem casa não? Agora só vive na rua! Tem mais sorte que juízo, hein?
Pais, mães e avós, vocês nos pediram, com razão, que ficássemos em casa estudando pro vestibular, nos preparando para o futuro. Puxavam nossas orelhas deixando claro que seria um sacrifício passageiro e que tudo valeria a pena, que logo estaríamos no mundo. E que não é preciso ter pressa com o seguir natural da vida.
Agora é nossa vez: façam favor! Não é hora de caçar confusão! Fiquem quietinhos em casa, que na vida tem tempo pra tudo. E entendam, se brigamos é para o bem de vocês, vocês ainda vão nos agradecer. O que mais tememos é que essa brincadeira acabe em choro.
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Show de bola!
Obrigado pelo comentário.
Abraço, Thiago.
Eu estou passando por isso. Estou pensando em trocar a chave da fechadura, mas acho q se fizer isso vou ser expulsa daqui.
Senhores ruins e egoístas – pensam assim : “Eu não ligo pra mim mesmo………. ”
Mas deveriam pensar como os outros se sentem !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Onde não floresce cuidado não floresce amor.
haha
Acho que não é bem egoísmo, é mais o fato deles já terem passado por muita coisa. Leva muitos a minimizarem o problema.
Abraço e obrigado pelo comentário!
Adorei o texto. Nossos “velhos” estão muito teimosos… Mas vamos ter fé, que eles vão acabar entendendo.
Cheio de Idosos no Supermercado … E nas Farmácias pra comprar álcool gel, ou seja , se preparando pra pegar o Coronavírus , opps se preparando para quarentena, né?! Afff, e aquela notícia de uma empresa dando álcool Gel, me perguntaram se eu ia buscar , eu disse :” Claro que não ! Pegar Fila , ir na muvuca do raio que o parta , de que adianta o gel se ficarmos doentes justamente na fila do álcool gel?!” Hilário! Fica o aviso para os idosos que gostam de se arriscar , se bem que eu já com 52 anos tb tenho que me cuidar e me cuido , todos devemos nos cuidar … Fica a dica # não pegue fila do álcool gel. kkkkk
Pois é, melhor evitar filas. 🙂
Obrigado pelo comentário, Rosely.
Adorei, Rafa!!!! Parabéns pelo texto bem humorado mas ao mesmo tempo profundo!
Falou tudo que gostaríamos de falar para eles!!!
🥰
Obrigado! Ótimo ver você por aqui no 360meridianos. 🙂