Em abril de 1982, um grupo de civis desarmados resolveu peitar o governo americano e declarou independente uma ilhota localizada na ponta da Flórida, tão na ponta que leva o título de cidade mais ao sul dos EUA. Key West acabava de se tornar a Conch Republic.
O motivo? Um bloqueio considerado absurdo pelos moradores locais. A Patrulha de Fronteira dos Estados Unidos havia instalado uma barreira na US 1, a única estrada que conecta Key West ao continente, como se fosse realmente uma fronteira internacional. A partir de então, qualquer carro que cruzasse os 150 km de ponte sobre o oceano poderia ser revistado, e os passageiros submetidos a longas filas.
O resultado foi imediato: turistas começaram a desistir de visitar a ilha, restaurantes ficaram vazios, hotéis tiveram cancelamentos em massa. Para uma comunidade que dependia quase exclusivamente do turismo, a nova lei era uma sentença de morte.
“Estão nos tratando como estrangeiros? Pois, então, nós vamos ser mesmo!”, disseram os rebeldes, enquanto se aglutinavam para um protesto performático. O prefeito Dennis Wardlow organizou uma cerimônia pública, com direito a bandeira hasteada e discurso de independência.
Para simbolizar a “guerra” contra os Estados Unidos, eles lançaram pedaços de pão contra um navio da Guarda Costeira ancorado no porto e se renderam logo depois, com um pedido oficial de um bilhão de dólares em ajuda estrangeira para “reconstruir o país após o conflito”.
O episódio inteirinho teve tom de sátira, mas incorporou perfeitamente o espírito de Key West: rebelde, espontâneo, livre. Ao longo de sua história, a ilha serviu de refúgio para excêntricos, artistas, foras-da-lei e sonhadores que não encontravam lugar no continente.
Key West: Um lar para hippies, poetas e piratas
Num país que transforma tudo em parque de diversões, trenzinhos da alegria circulam com os turistas em frente a casas que parecem cenográficas e cruzeiros do tamanho de arranha-céus atravacam o horizonte. Os Estados Unidos fizeram com Key West o que sabem fazer de melhor: embalaram, plastificaram e colocaram à venda.
Mas nem sempre foi assim. No século 17 e início do 18, antes da independência dos EUA, a região das Florida Keys era um dos pontos mais perigosos para a navegação no Caribe. Os recifes rasos e traiçoeiros ao redor da ilha causavam naufrágios frequentes, e isso era um prato cheio para corsários, contrabandistas e saqueadores, que viviam de pilhar os destroços ou atacar navios que tentavam cruzar aquelas águas.
Piratas famosos, como Black Caesar (um africano escravizado que escapou e se tornou corsário no Caribe), teriam usado as Keys como base de operações. Muitos se escondiam nas pequenas ilhas do arquipélago, onde as autoridades espanholas e britânicas tinham dificuldade de chegar.
Com o passar do tempo, a pirataria foi diminuindo, mas a fama da ilhota de “terra sem lei” continuou. No século 19, já incorporada ao país, Key West se transformou em capital do wrecking: o resgate (nem sempre legal) de mercadorias de navios naufragados. O negócio foi tão lucrativo que Key West chegou a ser a cidade mais rica da Flórida.
Anos mais tarde, o clima tropical e as águas rasas do caribe atraíram outro tipo de degenerado: artistas e escritores passaram a chegar aos montes, em busca de isolamento, luz do sol e uma vida longe das convenções.
Foi esse clima que atraiu Ernest Hemingway, que, entre noites etílicas em bares de rum dos anos 30, escreveu romances como Por Quem os Sinos Dobram e deixou uma herança curiosa: dezenas de gatos de seis dedos que ainda hoje circulam pelo jardim de sua casa que se tornou museu e uma das atrações mais famosas da ilhas.
Logo depois veio Tennessee Williams, dramaturgo de Um Bonde Chamado Desejo, que encontrou em Key West liberdade para viver sua sexualidade abertamente em uma época em que isso era tabu no resto dos Estados Unidos.
Nos anos 1960 e 70, com a contracultura em alta, a ilha se tornou destino de hippies, músicos e artistas experimentais. Enquanto outras cidades reprimiam o movimento, Key West abriu os braços. Ruas coloridas, performances improvisadas e a efervescência da comunidade LGBTQ+ transformaram a ilha em um dos lugares mais alternativos da América.
Duval Street: a rua que virou ícone na luta LGBTQIA+ em Key West
Um quarteirão inteiro com as ruas pintadas nas cores do arco-íris marca o cruzamento da Duval St. com a Petronia St. Esse é o cruzamento mais icônico de Key West, localizado no bairro histórico de Bahama Village, onde a vida noturna prospera e a aura de liberdade da ilha ainda ganha forma.
Nos anos 1970, quando boa parte dos Estados Unidos era (ainda mais) hostil à comunidade LGBTQIA+, Key West já oferecia um espaço de acolhimento. Nessa época, surgiram alguns dos bares mias icônicos para o movimento, que existem até hoje.
O The Copa e o The Monster foram pioneiros, abrindo as portas para um público diverso em um período em que isso ainda era raro — e perigoso — em outras partes do país. Logo depois, nos anos 80, o 801 Bourbon Bar ficou conhecido pelos shows de drag queens que seguem lotando a casa e mantendo viva a cena queer da ilha.
Apesar de todo esse histórico, com o boom turístico e a guinada à direita da Florida, Key West viu chegar um novo tipo de morador, aquele que se posiciona bem longe dos ideias progressistas que fundaram a ilha. Hoje as bandeiras coloridas convivem com camisetas com os dizerem “Gulf of America” e bonés vermelhos da MAGA, um mini-cosmo das contradições que enfrentam os EUA nos últimos anos.