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Grandes Viajantes: Agatha Christie, a rainha do crime

Uma viagem pelo Expresso do Oriente, um cruzeiro no Nilo, um passeio por hotéis chiques na costa britânica. Em comum, um crime. E a imaginação de uma mulher que viajou pelo mundo e criou algumas das melhores histórias de detetive até hoje. Agatha Christie é uma das minhas escritoras favoritas, mas foi só quando me hospedei no hotel que ela costumava ficar em Aswan, no sul do Egito, e me deparei com a mesma vista que a inspirou a escrever Morte no Nilo, que me dei conta que, além de uma grande escritora, ela também era uma grande viajante.

Leia todos os textos da série As Grandes Viajantes

O Misterioso Caso de Styles

Em 1920, Agatha Christie, uma mulher de 30 anos, vinda de uma família de classe média alta na Inglaterra, publicou seu primeiro livro. O Misterioso Caso de Styles foi escrito cinco anos antes e recusado por seis editoras. Christie, sobrenome do seu primeiro marido, foi educada em casa pela mãe e pelo pai, aprendeu a ler sozinha aos cinco anos e tinha, desde cedo, talento para artes: escrevia poesias e tocava piano, mas era muito tímida. Apesar do sucesso, O Misterioso Caso de Styles rendeu a ela apenas 25 libras. Alguns livros mais tarde, ela trocou de editora.

Seu pai morreu quando ela tinha 11 anos e quatro anos depois ela foi estudar na França. Aos 20, viajou com a mãe para uma temporada de três meses no Cairo. Hospedadas no Gezirah Palace Hotel, estavam ali para viver a vida social do Egito colonial e, quem sabe, encontrar um marido para Agatha. Em 1912, ela conheceu Archie Christie, um aviador. Casaram-se dois anos depois, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

agatha christie londres memorial

Memorial de Agatha Christie em Londres. Foto: Shutterstock

Enquanto Archie lutava no front francês, Agatha trabalhou como enfermeira, cuidando do dispensário de medicamentos no hospital, onde adquiriu bastante conhecimento sobre venenos. Foi durante a guerra que ela escreveu o caso de Styles, e tudo começou por conta de um desafio da irmã sobre sua capacidade para escrever uma boa história de detetive.

A biografia de Agatha conta que os personagens do seu primeiro livro foram inspirados numa viagem de trem em sua cidade natal, Torquay. A escritora era capaz de criar atmosferas e personagens tão vivos e realistas porque os baseava nas figuras que via e conhecia: militares, nobres, viúvas, médicos. Muitos de seus livros acontecem em grandes casas no interior da Inglaterra, o que tem muito a ver com sua capacidade de observar e descrever as políticas e rivalidades entre as famílias e pessoas a seu redor.

O Mistério do Trem Azul

Com o fim da Primeira Guerra, Christie e o marido foram convidados para o Grand Tour, uma viagem pelas colônias do Império Britânico. Em 1922, partiram para Africa do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Havaí e Canadá. Durante o tempo em que permaneceu na estrada, escrevia para sua única filha cartas que descreviam detalhadamente as viagens e os companheiros da jornada. Ela foi a primeira mulher britânica a surfar de pé.

De volta a Inglaterra, ela e o marido nomearam a casa que compraram em 1924 como Styles, uma homenagem ao primeiro livro dela. Mas as coisas não demoraram a ficar mal. A mãe de Agatha morreu em 1926. Nesse mesmo ano, o marido pediu divórcio e revelou que tinha uma amante.

Então, vem uma parte da história de Agatha Christie que nunca foi bem solucionada, como o fim de seus mistérios literários. Ela deixou sua filha com os empregados da casa, pegou o carro e sumiu. O carro foi encontrado abandonado. Christie estava desaparecida. Seu sumiço virou capa de jornal na Inglaterra e nos Estados Unidos. Foram mobilizadas equipes de busca, uma comoção nacional. Até que, no Harrogate Spa Hotel, um funcionário reconheceu uma mulher que fez check-in com o nome de Theresa Neale (sobrenome da amante do marido), vinda da África do Sul, como Agatha Christie. Ele alertou as autoridades e Christie afirmou sofrer de amnésia.

agatha christie jornal

A história virou um escândalo, com muita gente acusando-a de fazer uma jogada de marketing para promover o livro que tinha acabado de lançar. Outros diziam que era um plano para incriminar seu marido. Seja como for, Agatha nunca mais tocou no assunto.

Ela só aceitou o divórcio dois anos depois. Foi viajar para as Ilhas Canárias com a filha, onde conseguiu terminar o Mistério do Trem Azul, processo que se arrastava desde a morte da mãe. Ela decidiu manter o nome Christie publicamente, porque já era uma escritora conhecida.

Assassinato no Expresso do Oriente

Divorciada, o desejo de Agatha por explorar o mundo só cresceu. Um dos seus maiores sonhos era viajar no legendário trem Expresso do Oriente: Quando eu estive na França, Espanha ou Itália, o Expresso do Oriente esteve frequentemente parado em direção a Calais e eu desejava pular dentro dele”, afirmou Agatha Christie em seu livro Uma Autobiografia.

expresso do oriente shutterstock

O Expresso do Oriente em 2017. Crédito: Shutterstock

A decisão de partir veio após uma conversa com um oficial naval, que lhe contou sobre suas viagens pela encantadora Bagdá e o Iraque. Foi então que ela reservou bilhetes para o Simplon-Orient Express, que a levaria de Paris a Istambul, de Istambul a Damasco, de Damasco a Bagdá, e com planos de visitar um sítio arqueológico em Ur, na Síria.

Uma mulher sozinha, viajando para o Oriente Médio, obviamente levantou muitas preocupações. A resposta de Christie para isso: “Uma pessoa precisa fazer coisas por si mesma às vezes… Ou eu me apego a tudo o que é seguro e que eu sei, ou então eu desenvolvo mais iniciativa, faço as coisas sozinha”.

Cinco dias depois, ela embarcou no trem e um novo capítulo em sua vida começou. O trem dos seus sonhos, como ela afirma em sua biografia, permitiu que ela visse, fascinada, um mundo completamente diferente. Passou por montanhas nos Balcãs e mares na Turquia. Quando chegou a Ur, conheceu seu segundo marido, o arqueólogo Max Mallowan.

As viagens de Christie não pararam. Ela levava sua máquina de escrever nas suas viagens, mesmo quando visitava com Max sítios arqueológicos, tornando-se, ela mesma, uma especialista na área.

Agatha e max

Agatha e Max em suas viagens

A inspiração para um de seus livros mais famosos veio em 1931. Uma noite, quando viajava sozinha, o trem precisou parar por causa de uma tempestade que inundou a linha. A tempestade virou neve e o trem demorou dois dias para finalmente continuar seu trajeto e chegar até o destino. O incidente e os companheiros de viagem inspiraram a trama de Assassinato no Expresso do Oriente.

Morte no Nilo

O casamento com Max e suas viagens arqueológicas fizeram de Agatha Christie uma experiente fotógrafa e ajudante do marido. Ela catalogava e inclusive participava da restauração das peças encontradas por ele. Vários dos artefatos descobertos pelo casal estão em exposição nas galerias da Mesopotâmia, no Museu Britânico, em Londres.

Os sítios arqueológicos que ela conheceu nesse período também tornaram-se inspiração para seus livros. Encontro com a Morte se passa em Jerusalém e Petra. Morte na Mesopotâmia conta a história de uma enfermeira que cuida de um arqueólogo numa escavação no Iraque. Para escrever nessas condições nada fáceis, ela dizia que precisava apenas de uma mesa firme, uma cadeira e uma máquina de escrever.

O Egito também foi um importante pano de fundo dessas histórias. O livro favorito do único neto de Christie era E no final a morte, escrito em 1943, mas que narra uma história que se passa no Egito Antigo. A pesquisa para escrever um romance que se passa quatro mil anos antes contou com a ajuda de amigos egiptólogos e é bastante fiel à realidade do antiga Tebas.

aswan egito old cataract hotel

Um dos meus favoritos é Morte no Nilo, que conta a história de uma intriga entre jovens apaixonados, o detetive Hercule Poirot e um cruzeiro pelo Rio Nilo. A inspiração veio de seus dias no Hotel Old Cataract (foto acima), com uma vista majestosa para o Rio e os barcos que circulam ali diariamente, como contei no início do texto.

E não sobrou nenhum

Em 1938, Christie comprou sua casa dos sonhos em Devon, na Inglaterra. A mansão, chamada Greenway, foi o lugar onde ela e a família passaram quase todos os verões até sua morte, em 1976. Isolada, cercada por natureza, com uma confortável biblioteca e uma cadeira de leitura perto da janela. Durante a Segunda Guerra Mundial, a casa foi requisitada pelo exército britânico e dezenas de tropas ficaram alojadas ali. Pintaram um friso com cenas da guerra, que Agatha pediu que a deixassem ali pela história. A casa hoje é parte da National Trust e pode ser visitada desde 2009.

Essa região também inspirou diversos romances policiais. Um hotel numa pequena ilha na costa de Devon foi a inspiração para a ilha e a casa de E não sobrou nenhum (também conhecido como o Caso dos Dez Negrinhos), que é seu livro mais vendido e, logo, um dos mais vendidos do mundo. Até hoje existe um hotel nessa ilha, o Burgh Island Hotel, que tem uma suite de Agatha Christie.

A partir dos anos 1950 ela diminuiu o ritmo da escrita – que era de pelo menos um livro por ano – e passou a dedicar-se mais a uma vida tranquila e para adaptar suas obras para o teatro – A Ratoeira é a peça que está há mais tempo em cartaz no mundo.

agatha christie livros

Ao longo de sua carreira, a escritora publicou 66 histórias de detetive e 14 coleções de contos. Os mais populares são aqueles com seus famosos personagens solucionadores de mistérios, o detetive belga Hercule Poirot e a simpática senhorinha Miss Marple. Ela também escreveu seis romances com o pseudônimo de Mary Westmacott, que foi descoberto em 1946.

O Guiness lista Agatha Christie como a maior vendedora de best sellers do mundo. Seus livros venderam pelo menos 2 bilhões de cópias. Ela também é a autora mais traduzida do mundo: é possível encontrar seus mistérios em 103 idiomas.

Cai o pano 

Em 1971, Agatha Christie ganhou o título de Dama pela ordem do Império Britânico, por sua contribuição com a literatura. Um dos últimos livros que escreveu, o último com Hercule Poirot, chamado Elefantes nunca esquecem, foi publicado em 1973, e alguns especialistas indicam que há sinais de que a autora estaria sofrendo de Alzheimer.

A última aparência pública da autora foi na abertura do filme Assassinato no Expresso do Oriente, a versão de 1974. Ela morreu em janeiro de 1976 e foi enterrada na Igreja de St Mary’s, em Cholsey.

agatha christie

Esse não foi o fim de seu legado, entretanto. Desde os anos 1940, Agatha Christie planejou dar um fim em seus personagens mais famosos, caso morresse. Ela escreveu, durante a Segunda Guerra Mundial, Cai o Pano e Um crime adormecido, com os últimos mistérios e mortes de Poirot e Miss Marple, respectivamente. Guardou essas histórias num cofre e eles só foram publicados após a morte da autora.

A morte de Hercule Poirot foi homenageada com um obiturário de uma página inteira no jornal The New York Times. Foi a primeira vez que fizeram isso para um personagem de ficção.

Você encontra mais informações sobre a Agatha Christie em seu site oficial.

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Luiza Antunes

Luiza Antunes é jornalista e escritora de viagens. É autora de mais de 800 artigos e reportagens sobre Viagem e Turismo. Estudou sobre Turismo Sustentável num Mestrado em Inovação Social em Portugal Atualmente mora na Inglaterra, quando não está viajando. Já teve casa nos Estados Unidos, Índia, Portugal e Alemanha, e já visitou mais de 50 países pelo mundo afora. Siga minhas viagens em @afluiza no Instagram.

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16 comentários sobre o texto “Grandes Viajantes: Agatha Christie, a rainha do crime

  1. Eu acho que esse é um dos melhores artigos que já li aqui, senão na vida! Agatha Christie foi a primeira autora não infantil que eu li, com 12 ou 13 anos, e uma das minhas favoritas até hoje.

    Ler sobre o aspecto viajante dela (estando em Istanbul, na Turquia, aos 9 meses do meu ano sabático)fez eu me identificar e admirar mais ainda sua vida e seu trabalho, sem contar a nostalgia de lembrar as incontáveis horas que passei lendo seus livros.

    Estou apaixonada por esse texto, parabéns mesmo!

  2. Obrigada por esse post, Luiza!!

    Agatha Chistie merece mesmo ser lembrada como uma grande viajane!

    Também sou fã dela desde os 14 anos quando li A casa do Penhasco. Sabia quase tudo sobre sua vida, mas esse olhar sobre ela como viajante ficou sensacional!

    Pensei nela para escrever um post sobre mulheres viajantes da história, mas decidi focar nas brasileiras.

    As viagens dela dão roteiros incríveis!

    Tô adorando essa série de Grandes Viajantes.

    Bjs
    Juh

  3. Vocês do 360 sempre saindo à frente! Pensei em escrever sobre mulheres viajantes ao longo da Historia, para marcar o dia das Mulheres, mas olha aqui que post legal sobre uma, que teve um impacto enorme na minha adolescência. Eu ia à biblioteca semanalmente em busca de mais aventuras da Agatha Christie, que parece estar tendo um revival, que bom.

    1. Ei Marcia,

      Já escrevemos a série Grandes Viajantes há bastante tempo, dá uma olhada nos posts antigos, tem muita história inspiradora!

      Tb lia a Agatha semanalmente <3

  4. Caramba! Sou fã da Agatha Cristie mas nunca havia parado pra ler sua história pessoal, apenas os livros. Obrigada por isso e amei ver a delicadeza dos titulos em analogia aos titulos de livro. Sensacional! Como sempre um lindo texto por aqui!

  5. Que nostalgia boooa que este post me trouxe!!

    Foram os livros da Agatha que despertaram em mim uma paixão enorme por ler, quando eu tinha uns treze anos!! E agora parando pra refletir, talvez, mesmo que inconscientemente, também tenha me despertado o interesse por conhecer novos lugares! hehehe

    Naquela época devorava um atrás do outro!
    Morte no Nilo foi justamente o primeiro que li!

    Abração,
    Murilo

    1. Que legal! Realmente, não tinha pensado por esse lado, mas a Agatha explora tantos lugares, que talvez alimentou esse bichinho das viagens sem que a gente percebesse

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