A história da escritora argentina Juana Paula Manso está intimamente conectada com as lutas políticas do seu país. Foi enquanto estava exilada que ela escreveu e publicou no Brasil o livro “Os Mistérios do Prata”, narrativas sobre uma ditadura que hoje poucas pessoas conhecem. Juana foi a primeira autora latino-americana a publicar um romance histórico sobre a região. E essa é a nossa raridade literária do mês, resgatada pelo Clube de Literatura Grandes Viajantes.
Uma ditadura na Argentina
O século 19 foi um período de grandes conflitos na América do Sul. Por todo subcontinente eclodiram movimentos revolucionários contra a dominação espanhola e portuguesa, que evoluíram para disputas internas e entre os novos estados que se formavam. Depois de o início de uma Revolução em 1810, a Argentina tornou-se independente em 1816. A discussão sobre o futuro do novo país levou ao surgimento de dois partidos políticos opostos.
De um lado estavam os Federalistas, que apoiavam a autonomia das províncias argentinas e o protecionismo econômico. Os “caudilhos”, ou seja, grandes latifundiários, defendiam essa posição. Do outro lado estavam os unitários, em sua maioria membros da elite esclarecida, que defendiam um governo central em Buenos Aires e tinham ideias liberais e democráticas para o futuro do país.
Foi nessas condições de disputa que se deu a ascensão de Juan Manuel Rosas, um estancieiro nascido em Buenos Aires, que usou do seu poder e influência como grande senhor de terras para lutar ora de um lado, ora de outro, em benefício dos próprios interesses. Conseguiu tornar-se chefe de estado em 1828, com o apoio dos caudilhos e das massas populares.
Retrato de 1833 sobre a Campanha do Deserto e o massacre indígena promovido por Rosas
Ao fim do seu primeiro mandato, em 1832, liderou uma longa campanha no sul da Argentina que promoveu o massacre de populações indígenas em favor dos estancieiros. Tal “Campanha do Deserto” lhe rendeu ainda mais apoio, o suficiente para que os seguidores rosistas sitiassem Buenos Aires, e ele desse um golpe de Estado em 1835.
Rosas promoveu um governo ditatorial com terrorismo de estado, dissolvendo o congresso, decretando o fim da liberdade de imprensa e a livre navegação dos rios que cortam o país. Criou uma milícia, a Mazorca, com o objetivo de eliminar qualquer um que conspirasse contra seu regime, especialmente membros e simpatizantes do partido Unitário. Durante a ditadura, cerca de 22 mil pessoas morreram e outros milhares exilaram-se.
Caricatura anti-rosista publicada em Montevidéu entre 1841 e 1842
A família Manso foi uma das que precisaram se exilar no período da Ditadura de Rosas.
Durante os 17 anos em que esteve exilada, Juana Paula Manso viveu no Brasil, no Uruguai, nos Estados Unidos e em Cuba. Foi educadora, publicou romances, livros de poesia, pedagogia e feminismo. Fez traduções, editou e contribuiu com jornais e revistas da época, além de ter trabalhado como dramaturga e brevemente como atriz.
A história de Juana Paula Manso
Retrato de Juana P. Manso nos últimos anos de sua vida
Nascida em 1819, filha de um espanhol e uma portenha – união que na época era ilegal – Juana frequentou a escola desde criança e, apesar de ter destaque acadêmico, se chateava com os métodos de ensino. Por isso, passou a estudar por conta própria.
Seu pai participou dos conflitos na Revolução de 1810. Ela e um grupo de mulheres fizeram uma bandeira para o General Lavalle usar numa batalha contra Rosas em 1828. Toda a família apoiava publicamente ideias liberais sobre educação e democracia.
Com o crescimento do poder de Rosas, as ameaças aos Manso cresceram. Eles decidiram imigrar para o Rio de Janeiro e, mais tarde, para Montevidéu. Todos os bens da família foram confiscados. Juana tinha 20 anos.
Cinco anos depois, quando Manuel Oribe – presidente uruguaio e aliado do General Rosas – sitiou a capital uruguaia, a família Manso voltou a viver no Brasil. Foi aqui, em 1844, que conheceu o marido, Fernando de Sá Noronha, violinista português com quem viajou pelo mundo, vivendo em Washington, na Filadélfia e em Havana.
Com duas filhas e um casamento falido, ela voltou ao Rio mais uma vez. Foi então que fundou e foi editora-chefe do “Jornal das Senhoras”, primeiro periódico dedicado a mulheres na América Latina. O veículo tratava de literatura, teatro, viagem, música, moda e também política e educação.
Na primeira edição, publicada em janeiro de 1852, ela escreveu:
“Ora pois, uma senhora à testa da redação de um jornal! Que bicho de sete cabeças será? Contudo na França, na Inglaterra, na Itália, na Espanha, nos Estados Unidos, em Portugal mesmo, os exemplos abundam de senhoras dedicadas à literatura colaborando em diferentes jornais. Porventura a América do Sul, ela só, ficará estacionária nas suas ideias, quando o mundo inteiro marcha ao progresso e tende ao aperfeiçoamento moral e material da sociedade?”
Foi nesse jornal que ela publicou a primeira versão de “Los Misterios del Plata”, Romance Histórico Contemporâneo, com parte do título assim, em espanhol. O texto foi traduzido por ela para o português e editado ao longo de 26 edições do folhetim.
No mesmo ano, Juana naturalizou-se brasileira com o objetivo de estudar medicina obstetrícia. Sonho que nunca realizou, porque a Escola de Medicina do Rio de Janeiro recusou sua candidatura por ser mulher. O ano seguinte também foi de desgostos: seu pai morreu e o marido a abandonou para voltar a Portugal com a amante.
Por causa do divórcio, que se concretizou alguns anos depois, existe a tendência atual de cortar o “de Noronha” do sobrenome da autora.
Com tantos desgostos e o fim da Ditadura de Rosas em 1852, Manso escreveu para amigos argentinos, entre eles, Valentín Alsina, que a ajudaram a retornar a Buenos Aires. Lá, ela fundou uma publicação semelhante à que tinha no Brasil, o Álbum de Señoritas.
Juana Manso passou a dedicar-se ferrenhamente à pedagogia e ao feminismo, colocando-se à frente de projetos de educação popular e movimentos políticos para coeducação de homens e mulheres. Foi professora e diretora de escolas, além de ter feito parte do Conselho Nacional de Educação da Argentina.
Morreu em 1875, aos 55 anos. Em discurso na data da morte de Manso, a escritora argentina Juana Manuela Gorriti afirmou:
“Juana Manso, glória da educação. Sem ela, nós seríamos submissas, analfabetas, postergadas, esnobadas. Ela é o exemplo, a virtude e a honra que exalta a valentia da mulher.”
“Os Mistérios do Prata” no Clube Grandes Viajantes
A publicação de Los Misterios del Plata na Argentina como livro só foi feita 30 anos após a morte da autora, em 1899, e teve como subtítulo “Novela Histórica Original”. A segunda edição, publicada 1924, é mais conhecida. Foi editada pelo argentino Ricardo Isidro Lopez de Muniz, que acrescentou prólogo, epílogo e notas explicativas. O subtítulo é “Episódios Históricos da Época de Rosas”.
A diferença entre as versões brasileira e argentina é que, na segunda, publicada postumamente, foram acrescentadas informações, alteradas a estrutura dos capítulos e parte do enredo da protagonista feminina. Apesar de Ricardo Muniz afirmar que alterou o manuscrito e, particularmente, os últimos capítulos levando a intenção e o estilo da autora em consideração, alguns estudiosos afirmam que o perfil de Antônia Alsina escrito pelos editores homens não é consoante com a versão pacifista da heroína descrita por Manso.
Para a edição de Os Mistérios do Prata preparada pelo Clube de Literatura Grandes Viajantes, recuperamos a versão brasileira do romance, inteiramente escrita e traduzida para o português por Juana Manso.
A partir das antigas edições do Jornal das Senhoras, arquivadas na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, fizemos uma diagramação especial, correções e atualização do português e também acrescentamos notas explicativas, este prólogo e um epílogo sobre o fim da história.
A capa, que representa o porto de Buenos Aires no século 19, foi ilustrada pela artista Fernanda Coimbra.
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Outros lançamentos do Grandes Viajantes
- O Gigante Brasilião, de Júlia Lopes de Almeida
- Viagem a Sorrento, de Nísia Floresta
- Dias de Milagre, de João do Rio
- Do Pará a Pernambuco, de José Coelho Gama e Abreu
- Apontamentos Sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb pela Europa, de Raphael Bordallo Pinheiro
- Dois Pescadores de Leça da Palmeira, de Júlio César Machado
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