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Histórias e recordações compartilhadas ao redor da fogueira

Um balde de água com ervas e uma fogueira acesa sobre três pedras com três pedaços de madeira por trás. Troncos servem como assento e rodeiam o espaço. No centro, uma espiga de milho e uma pata de vaca dissecada se penduram do teto de palha. Pilares de madeira sustentam a construção na qual as paredes são substituídas por madeiras cruzadas e as entradas são marcadas por letreiros que dizem sek këenxi (o sol se oculta), sek wejxa (entrada de vento e chuva) e sex kaanxi (saída do sol). O lugar é um centro criado em Yu’luuçx, resguardo de Canoas, no qual os membros do povo nasa, que habita a região do Vale do Cauca, na Colômbia, se reúnem para falar sobre a situação da língua nasa yuwe. O evento se parece com uma reunião, mas para eles é o px kweht, o ritual da tulpa.

Do balde se tira um pouco de água com uma tigela e se molha a cabeça dos presentes. Ao entrar no centro, é preciso tomar um gole de uma garrafa de aguardente e agradecer à terra com um gesto. Depois, um dos participantes pega a garrafa com a mão direita e joga um pouco do licor sobre cada uma das três pedras, que representam o pai, a mãe e as crianças, simbolizando a família. “Nos reunimos aqui para compartilhar. A cada encontro, fazemos uma harmonização do espaço com plantas secas para que a paz entre na tulpa”, explica Venâncio Vargas, um dos participantes.

Venancio Vargas enumera sem titubear cada procedimento de harmonização. Um deles é a forma de entrar no local: “Desde o momento em que entramos na tulpa, sempre andamos pela direita, porque os mais velhos nos explicam que temos a espiral nas impressões digitais e na planta dos pés. Caminhamos conforme essa espiral. Quando fazemos ao contrário, nos atrapalhamos, mas se o fazemos bem, estamos unidos, e esse fio cresce e não tem fim”, afirma.

Além dos procedimentos, Venancio também tem certeza de outra coisa: a importância do ipx kweht, ou da tulpa, para a cultura nasa. Em tradução  literal, o tulpa significa fogueira, mas, para esse povo, explicar o significado dessa palavra requer viajar na memória de cada um. Venancio se lembra de sua infância, de quando se sentava ao redor do fogo enquanto sua mãe preparava os alimentos, uma recordação que ele relaciona com a unidade da família, já que na época só se falava em nasa yuwe. A situação de hoje é bastante distante, as fogueiras se apagaram e deram lugar às cozinhas à gás, e a chegada das mesas também mudou a forma como a família se reunia para esperar e dividir a comida.

Umas vinte pessoas, homens e mulheres, estão sentadas ao redor do fogo. A chuva cai timidamente sobre o lugar e a fumaça entra nos olhos dos presentes. Um homem enxuto e calvo, de cabelos negros e curtos, pede a palavra. Seu nome também é Venancio. Ele para e expõe suas lembranças sobre o ipx kweht, memórias direcionadas aos mais velhos do local, que antes se juntavam naquele espaço para compartilhar, falar sobre a identidade e planificar o dia a dia na família nasa. “Agora nos deram a tecnologia, a televisão, os celulares e nos tiraram a fogueira. As grandes multinacionais colocaram hidrelétricas, o gás. Se você chega na casa de um nasa hoje em dia, encontra pura cerâmica e pisos. Já não se pode fazer fogo, que era o que nos alimentava espiritualmente. É por isso que estamos como estamos”, diz Venancio.

Tulpa, local de reunião do povo Nasa, na Colômbia

Centro cerimonial onde o povo nasa se reúne para reviver o ipx kweh. Foto: Ignacio Espinoza.

Ele também tem uma cozinha, mas confessa que agora se levanta às cinco da manhã para acender uma fogueira, medida que tampouco lhe trouxe resultados. Para ele, se antes 90% das pessoas se comunicavam em nasa yuwe, hoje a cifra se reduziu a 4%. “Perdemos esse espaço de diálogo, de troca e de planejamento. Agora planejamos de outra maneira. Digo por experiência própria que já não falamos com nossas mulheres e filhos, porque o filho está vendo TV e a filha está conversando no computador. O marido de um lado e a mulher de outro”, conta.

Mas nem tudo é autocrítica. Ele se lembra da implantação dos Centros de Atenção Infantil – CAI -, em 1985, outro fato que contribuiu para a degradação da língua e da cultura local. “Separavam os bebês de seis meses dos pais e os mandavam a esse centro para serem educados por pessoas de fora da comunidade, que não sabiam falar nossa língua materna. Essas crianças nunca aprenderam a falar o nasa yuwe”, afirma. Para o futuro, as expectativas não são promissoras. Com um tom de voz lento e firme, Venancio reconhece que, mortos os adultos de hoje, morre também a língua e o ritual de ipx kweht.

Reunião entre membros da comunidade Nasa, na Colômbia

Crianças participam em um ritual na tulpa. Foto: Ignacio Espinoza.

As lembranças do professor

Entre os membros da comunidade, ele é conhecido como Professor Marino. Quando é sua vez de falar, se levanta sem tirar o chapéu de palha, a bolsa à tira-colo e o poncho. Suas lembranças o direcionam para sua avó e a como aprendeu o nasa yuwe, em volta da fogueira enquanto esperava que lhe preparassem o café e a comida. Ali todos falavam sobre o que cada pessoa viveu no trabalho aquele dia e também tinham conversas sobre a história de seu povo. “Nos contavam como foi a colonização e de como escravizaram nossa gente. A comunicação fluía entre todos, idosos, crianças, todos nos sentávamos para escutar. Me lembro que chegava a dormir enquanto escutava, porque as reuniões iam até as dez ou onze da noite”, recorda.

Marino também fala da natureza. Se o cachorro escolher um lugar para dormir, assim como a vaca e o cavalo, é porque eles sentem o curso natural das coisas, mas os nasa já perderam esse sentir espiritual com a terra: “Somos uma família e estamos fazendo o exercício que faziam nossos avós. Hoje, em todos os espaços educativos de assembleia, se fala de valores, mas se não voltarmos a compartilhar esses espaços, não voltaremos a compartilhar esses valores”, afirma. “Investimos milhões na preservação das línguas maternas, mas isso não mudará nada se o nasa yuwe não partir de casa, da família”.

Na casa de Venancio Vargas há um ipx kweht. A ideia é fazer voltar, junto com sua mulher, os momentos que marcaram sua infância. O objetivo é não perder a identidade e se sentir como um nasa para também poder conscientizar outras famílias. Assim como o casal, Marino também acredita que as vivências da tulpa o ajudaram a aprender a língua e vê na prática uma forma de resistência cultural, de não seguir a edução na qual predomina o espanhol. Por isso, conta que não enviou seus filhos ao CAI, mas que tampouco renega o ensino formal: “Podemos estar em todas essas universidades convencionais, mas nosso pensamento parte daqui. É preciso resistir e recuperar a tulpa. Podemos ter uma crença diferente, mas não podemos nunca nos esquecer que somos nasa”.

Reportagem de Ignacio Espinoza publicada originalmente no blog do Proyecto Wakaya e traduzido para o 360meridianos por Natália Becattini. Leia outros textos sobre essa viagem pelas línguas originárias da América Latina.

Proyecto Wakaya

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