Um letreiro colorido, desses que a gente corre pra tirar foto com o nome da cidade, anuncia a chegada ao povoado. Em frente às letras garrafais que dizem I❤️Palengue, três mulheres já aguardam nossa chegada. A grafia não é erro. É que a vila não recebe seus visitantes em espanhol, mas em língua palenquera, a língua mãe dos moradores de San Basílio de Palenque.
Vestidas em roupas coloridas, as mulheres sorriem e entoam uma canção de boas vindas no idioma. Qualquer pessoa que já tenha passado por Cartagena das Índias às reconhece. Com seus vestidos coloridos, turbantes bem armados e cestas de frutas tropicais reluzentes, na cidade elas são parte do cartão-postal, modelos que posam para compor a atmosfera das fotos dos turistas em troca de alguns dólares. Mas são poucos os que sabem de sua história.
Ali, no entanto, as palenqueras estão em casa.
— Bienvenidos, elas dizem. Essa é uma parte da África na América.
A luta por liberdade dos palenqueros na Colômbia
San Basílio de Palenque não é uma vila rural típica da Colômbia. Localizada aos pés dos Montes de María, uma pequena cadeia de montanhas logo ao sul de Cartagena das Índias, a pequena vila de 4 mil habitantes e casas simples de concreto guarda um passado de luta e resistência que a torna uma das mais importantes vilas históricas do país e uma Obra Mestra do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade da UNESCO desde 2008.
Em espanhol, Palenque quer dizer quilombo. E foi de uma forma muito parecida com os nossos quilombos que a cidade nasceu. Em 1600, Benkos Biohó, um rei africano de origem incerta que foi capturado em algum lugar que pode ter sido a atual República Democrática do Congo ou Angola e vendido na Colômbia, liderou uma grande fuga entre pessoas escravizadas que trabalhavam nas minas e fazendas da região caribenha conhecida como Bolívar.
Sob seu comendo, o grupo criou uma força de combate que se refugiou nas montanhas e, em um lugar estratégico, estabeleceram um assentamento que, mais tarde viria a ser conhecido como o primeiro povoado livre das Américas.
Mas essa liberdade não veio de mão beijada. Foram inúmeras tentativas da Coroa Espanhola de recuperar o domínio sobre a terra e as pessoas que viviam nela. Para proteger a comunidade, Biohó criou um sistema de comunicação baseado em tambores, que ajudavam a avisar sobre a chegada do inimigo, e uma inteligência que facilitou a fuga de outros africanos escravizados na região.
O herói acabou preso em 1619 e enforcado em Cartagena dois anos mais tarde. Sua execução foi considerada uma punição exemplar para desestimular outras rebeliões do tipo. Mas, utilizando-se de táticas de defesa, fortificação, organização comunal e resistência, o povoado conseguiu manter sua autonomia por mais de um século, até que, em 1713, a Espanha reconheceu oficialmente a independência da comunidade.
Hoje, a Colômbia ainda reconhece a autonomia de San Basílio, que é considerada uma comunidade tradicional e preserva sua língua, modo de vida, dinâmicas sociais e até seus próprios mecanismos de punição contra crimes, que aliás, são algo raro de acontecer por ali.
A história de San Basílio de Palenque
Quem me conta toda essa história é Victor Miranda, o guia designado a acompanhar meu grupo na visita. Ele é parte de uma cooperativa local que desenvolve o turismo de base comunitária na região e recebe tanto os viajantes independentes que descem dos ônibus de linha na rua principal, quanto os enviados por agências baseadas em Cartagena das Índias.
Victor conta que, assim como a maior parte dos habitantes, é descendente direto das pessoas que encontraram no Palenque a única chance de liberdade. Desde o reconhecimento da comunidade pela UNESCO, o turismo se tornou uma nova possibilidade de renda em um povoado em grande parte rural e, até então, empobrecida e esquecida pelo poder público. Com a interesse crescente dos visitantes, a auto-estima e a consciência de serem os guardiões de uma história, cultura e saberes únicos cresceu entre os moradores, que passaram a se organizar para mostrar para o mundo os principais aspectos de seu modo de vida.
A visita inclui oficinas de música, dança, medicina natural e conversas com os convidados, que também têm acesso a uma pequena casa-museu construída para simular o dia a dia típico dos a habitantes dali: os quartos, a cozinha, a divisão do trabalho, o momento de pilar o milho e os instrumentos musicais, sempre presentes.
O passeio começa na praça principal do povoado, onde a figura de Benkos Biohó está eternizada em um monumento que o retrata com os braços quebrando as correntes e erguidos em direção à África. A mesma imagem está estampada no centro da bandeira de San Basílio, que exibe também listras de três cores. “O negro, é a nossa cor, é a África. O azul, os mares. E o verde, a natureza”, explica o guia, apontado para uma imagem da bandeira pintada nos muros da escola local.
Mais adiante, outro graffiti registra em cores outro aspecto da cultura local. É um mural repleto de palavras na língua palenquera, um idioma que nasceu da mistura entre línguas europeias, como espanhol, inglês português, e línguas africanas trazidas de diferentes partes do continente, mas em especial o Kikongo, falada entre a Angola e o Congo, locais de origem da maior parte das pessoas levadas para essa região da Colômbia.
Palavras como kotó, que significa forte; etulé, estudante; e bumbilo, ideia, são estampadas no mural que nos convida a tentar formar nossas próprias frases. Em um portão ao lado, uma pixação afirma: Suto ma black sendai beautiful: Nós, os negros, somos lindos.
Tranças, tambores e… boxe? Cultura de San Basílio de Palenque
A língua não é a única herança que os palenqueros guardam como orgulho. Embora a Espanha tenha exigido a construção de uma igrejinha católica na praça central como condição de independência, a fé dos colonizadores não encontrou ali muitos fiéis. A maior parte das pessoas pratica uma religião afro-colombiana que tem inúmeras semelhanças com a Umbanda e o Candomblé; e o lumbalú, uma tradição funerária africana, ainda é a forma como os locais se despedem dos seus mortos.
Na casa-museu da comunidade, um dos quartos é dedicado a guardar fotografia das tranças usadas pelas mulheres dali. Se hoje os penteados são motivo de orgulho e tem finalidade estética, no passado cada trançado era um ato de resistência. Era nos cabelos que elas escondiam moedas e pequenas quantidades de ouro que poderiam ser usadas na fuga.
Quem passar por ali também vai entrar em contato com outro aspecto pouco esperado da vila: o esporte do coração dos palenqueros é o boxe. E muito disso se deve ao boxeador Antonio “Kid Pambelé” Cervantes, que nasceu por lá e foi duas vezes campeão mundial e um dos boxeadores mais bem-sucedidos da Colômbia.
Foi Pambelé o responsável por levar luz elétrica a San Basílio Palenque, em 1972. Quando foi disputar o título, o boxeador deu a seu tio um gerador de energia e uma TV. Todos os habitantes da vila se reuniram em torno do novo aparelho para prestigiar a luta. No retorno à Colômbia, já campeão mundial, o presidente em pessoa quis recompensá-lo pelo título, mas Pambelé recusou qualquer presente: “não dê nada para mim. Dê eletricidade ao meu povo”. E assim foi.
Uma academia de boxe foi construída no centro da cidade para treinar novos talentos, e há pelo menos mais dois outros palenqueros de prestigio internacional no esporte: os irmãos Ricardo e Prudêncio Cardona.
Mas a manifestação cultural mais evidente em San Basílio mesmo é a música. Os tambores podem ser ouvidos por todos os lados em Palenque e são um pilar da identidade cultural dali. Ritmos como o “Mapalé” e o “Bullerengue” são populares e são executados em várias ocasiões, de festivais até cerimônias familiares, como funerais e casamentos. A música e a dança servem como uma forma de contar histórias, preservá-las e expressar emoções coletivas, sejam elas alegres ou tristes.
E, se você quer ter um gostinho ainda mais especial desse lugar, uma grande oportunidade é visitá-lo durante a maior expressão da música palenquera, que ocorre todos os anos, durante três dias no mês de outubro. O Festival de Tambores y Expresiones Culturales recebe pessoas de todo o mundo e as batidas são ouvidas de cada esquina, sempre acompanhadas com as danças típicas, comida e muita festa.
Serviço – Como visitar San Basílio Palenque
Há ônibus que saem do Terminal de ônibus de Cartagena das Índias, mas a frequência deles é baixa. Uma alternativa é pegar os veículos que têm outros destinos, mas param numa rodovia próxima à entrada da vila. De lá, você pode ir até o centro de moto-táxi ou tuk-tuk.
Se resolver ir por conta própria, recomenda-se a contratação dos guias da cooperativa da cidade. Além de contribuir com a comunidade dessa forma, você ainda terá informações e acessos difíceis de conseguir explorando sozinho.
Você também pode contratar passeios guiados em uma das agências de Cartagena. Eles se encarregam do transporte de ida e volta e dos arranjos com os guias e atividades. Os passeios com almoço incluído custam a partir de US$ 120.
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