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Lampião, Maria Bonita e a história do Cangaço

“Eu mesmo matei Maria Bonita com dois tiros e arranquei a cabeça dela”, disse José Panta Godoy, numa entrevista publicada pela Folha de São Paulo, em 1996. Então um octogenário, o ex-cabo também afirmou ter dado o último tiro em Lampião, mas garantiu que só soube quem era porque ‘um companheiro da volante (a polícia) que conhecia o cangaceiro o alertou para não destruir aquela cabeça’. Essa entrevista está exposta no pequeno Museu do Sertão, em Piranhas, cidade às margens do rio São Francisco.

Lampião, Maria Bonita e seu bando foram derrotados em julho de 1938, na Grota do Angico, atual município de Poço Redondo, em Sergipe. O assassinato de Lampião colocou um ponto final no cangaço, fenômeno de banditismo que ocorreu no nordeste brasileiro por décadas. E que, como a frase que abriu este texto deixa claro, foi violento.

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Naquela manhã de 1938 e logo após a hora da reza, o bando de Lampião foi pego de surpresa pelas forças oficiais, que mataram onze cangaceiros. Virgulino foi um dos primeiros a morrer, o que fez com que parte do bando fugisse. Apenas um soldado morreu. Os cangaceiros tiveram as cabeças cortadas e exibidas como troféus em várias cidades brasileiras.

Em Piranhas, que fica a poucos quilômetros da Grota do Angico, as cabeças foram cuidadosamente colocadas na escadaria da prefeitura e fotografadas, num dos registros mais famosos e brutais do cangaço. Os corpos dos cangaceiros foram deixados para os urubus e mais tarde enterrados, mas suas cabeças continuaram a macabra peregrinação pelo Brasil. Foram objeto de pesquisa em universidades e durante três décadas foram expostas em Salvador, até que, após muita pressão dos familiares, foram enterradas, já na década de 1960.

lampião / degola

Imagem, de autor desconhecido, feita em Piranhas, em 1938

Quem foi Lampião?

Não que Lampião fosse um santo. Muito longe disso. O Rei do Cangaço espalhou o terror pelo sertão nordestino, tendo participado de saques em diversas fazendas e cidades, atos que também terminaram em selvageria. Assassinatos, marcação de inimigos com ferro quente, estupros, sequestros e castrações eram acontecimentos corriqueiros no cangaço. Mesmo assim, Lampião se tornou uma figura controversa: se muitos o temiam e o governo o queria morto, outros o admiravam e o viam como uma espécie de Robin Hood brasileiro.

Para entender o cangaço é preciso se lembrar do coronelismo, que existia desde os tempos coloniais e teve seu papel durante a República Velha. Os jagunços estão inseridos nesse contexto, seja de revolta contra os coronéis e seus desmandos, mas muitas vezes como mão armada deles, que protegiam determinados grupos de cangaceiros, davam armas e definiam áreas, normalmente de inimigos políticos, em que eles podiam agir.

lampião história

Até o governo, em determinado momento, teria requisitado Lampião. O objetivo? Pedir que os cangaceiros enfrentassem a Coluna Prestes, que se aproximava do nordeste. Aí a história fica cheia de nuances, mas o que se sabe é que Lampião e seu bando entraram em Juazeiro do Norte, onde foram tratados como heróis e recebidos por Padre Cícero, de quem Lampião era devoto. O religioso pediu que os homens largassem o cangaço, embora exista uma polêmica aí: alguns dizem que Padre Cícero chamou Lampião para proteger Juazeiro; outros garantem que ele foi pego de surpresa e só dançou conforme a música.

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Fato é que Lampião deixou a cidade com a patente de capitão e incorporado às forças oficiais, além de ter uma anistia pelos crimes passados e a missão de enfrentar a Coluna Prestes. Antes de ir embora, porém, deu entrevistas, autógrafos, tirou fotografias e atirou dinheiro pela janela do sobrado onde estava hospedado, para a alegria da multidão que esperava do lado de fora. Tudo bem que a patente não tenha tido valor real, mas serviu para reforçar o mito do Capitão Virgulino.

Sobre isso, inclusive, vale outra história, a de como Virgulino Ferreira da Silva se tornou Lampião. Aos 19 anos, o pai dele foi assassinado por um tenente, numa disputa de terras que já durava mais de uma década. Ele e os irmãos resolveram então entrar para o cangaço – queriam vingança, garante a versão oficial, embora alguns historiadores lembrem que esse tipo de pretexto era usado por quase todos os cangaceiros.

O apelido veio da habilidade de Virgulino com um rifle, que ele disparava enlouquecidamente, iluminando a noite da caatinga: “Espia, Levino! O rifle de Virgulino virou um lampião!”, disse um de seus irmãos, batizando para sempre aquele que seria o nome máximo do cangaço.

Por quase duas décadas, Lampião saqueou, entrou em centenas de combates, derrotou policiais inúmeras vezes e acumulou dinheiro e fama. Seus irmãos morreram no cangaço antes dele, que também esteve perto de bater as botas várias vezes, seja por tiro, seja por incêndio, seja por faca, seja por envenenamento. Muitas vezes, o boato da morte de Lampião se espalhou pelo país, para logo ser desmentido por mais um ataque do bando. Com isso, não é difícil imaginar por que muita gente jurava que o cangaceiro não tinha morrido. E por que as cabeças eram expostas de vila em vila.

Lampião história

A história de Lampião e Maria Bonita: como se conheceram

Em 1931, ao parar em Paulo Afonso, na Bahia, Lampião conheceu Maria Déia, que tinha vinte anos e era casada. Maria Bonita, como a chamava o cangaceiro, deixa a família para trás e se une a Lampião e ao seu bando. Juntos eles lutam por oito anos e têm pelo menos uma filha, Expedita, que é criada por amigos. Outras versões cogitam a possibilidade do casal ter tido mais filhos, mas que, por conta da dureza da vida no cangaço, teriam sido criados pela mãe de Maria, como se fossem irmãos da cangaceira.

No fim da vida, Lampião tinha um olho só (“Ter dois olhos é luxo”) e mancava de uma perna. Por insistência de Maria Bonita, operou o olho ruim. Para isso, se internou por um mês num hospital, fingindo ser um fazendeiro rico. “Doutor, o senhor não operou fazendeiro nenhum. O olho que o senhor arrancou foi o do Capitão Virgulino Ferreira da Silva, Lampião”, teria escrito ele na parede do quarto, ao deixar o hospital. O teria é necessário porque, se tratando de Lampião, é difícil dizer o que é lenda e o que é fato.

Quase um século depois, Lampião e Maria Bonita ainda estão no sertão. Agora eles habitam museus, centros culturais e até lojas de suvenires – os dois viraram símbolos de uma época. E levam, diariamente, uma multidão de turistas até a Grota do Angico, na chamada Rota do Cangaço, que parte da prainha de Piranhas, percorre o rio São Francisco e chega até o ponto em que os cangaceiros mais temidos, símbolos do banditismo dos séculos 19 e 20, foram emboscados, mortos e degolados.

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Se você parar para pensar, o ritual turístico é macabro – eu mesmo, já em Piranhas e ao refletir sobre o assunto, acabei evitando a Grota do Angico. Mas é fácil entender a curiosidade que Lampião e Maria Bonita despertam nas pessoas, história que foi contada em filmes, livros, novelas, peças de teatro e, claro, na literatura de cordel.

No auge, Lampião chegou a ter um fotógrafo oficial e a dar entrevistas, documentos que ajudam a recontar uma parte dessa história. Benjamin Abrahão, fotógrafo nascido no Líbano, conviveu com Lampião e chegou a coletar imagens para fazer um filme sobre os cangaceiros. O material foi apreendido e censurado pelo governo Vargas, mas sobreviveu e pode ser visto no vídeo acima.

Ao caminhar pelo sertão nordestino, é impossível não pensar em como tudo aquilo aconteceu. O sertão é luta. É sobrevivência. Ou, como escreveu Guimarães Rosa, “Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado.”.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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