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O amargo processo de se apaixonar pelo Fernet

Quando eu era criança, dois pequenos problemas relacionados à minha saúde tiravam o sono dos meus pais. O primeiro envolvia minhas birras para comer. O segundo, minhas constantes inflamações de garganta, que apareciam a cada troca de estação. As duas situações seguiam de forma paralela, até que eles descobriram um antídoto milagroso que matou os dois coelhos de uma vez só. Não por coincidência, o tal antídoto foi um grande pesadelo não apenas na minha vida, mas na de boa parte das crianças dos anos 90: Biotônico Fontoura. (Sim, ao que parece, sementes de sucupira acrescentadas a esse xarope alcoólico com gosto de morte ajudaram a reduzir a frequência das minhas crises de garganta).

Dizem que o paladar e o olfato são capazes de despertar fortes memórias afetivas. Quando eu provei a bebida nacional da Argentina pela primeira vez, o Fernet, fui imediatamente transportada para os meus verões em Brasília de Minas, quando, muito emburrada, eu era forçada a ingerir uma dose diária de Biotônico meia hora antes das refeições. Fernet é amargo igual remédio e, muito provavelmente, veneno. E não há nenhum motivo pelo qual uma pessoa em sã consciência possa escolhê-lo como drink da noite por livre e espontânea vontade.

Mas há quem escolha. Milhares de argentinos que consomem anualmente 13 milhões de litros da bebida em um país famosíssimo por sua produção de vinhos bons e baratos. Na mesma Buenos Aires que fabrica cervejas artesanais incríveis. 13 milhões de litros. Caso você não seja bom com números, isso equivale a dizer que, se você for se aventurar pela boemia hermana, invariavelmente vai dar de cara com ele. Fernet con coca-cola y mucho hielo, por favor.

Fernet Argentina

Produzido a partir da maceração de 40 ervas em barris de carvalho, o fernet foi originalmente criado em Milão, no século 19, como um remédio digestivo (não disse?). No entanto, assim como os muitos imigrantes italianos que cruzaram o atlântico, a bebida se estabeleceu na Argentina e ali criou profundos laços culturais. Há diversas marcas de fernet no mercado, mas apenas uma, a Fernet Branca, parece ser socialmente aceitável.

“Depois de algumas doses, você começa a realmente gostar do sabor”. Estatísticas de boteco dizem que 10 entre 10 pessoas que provam o Fernet pela primeira vez escutam essa frase de algum iniciado. Dizem que essa transformação de paladar tem até equação matemática: são precisos sete copos de Fernet com coca-cola para que suas papilas gustativas parem de enviar sinais de alerta para o cérebro pedindo para serem assassinadas. Algumas pessoas relatam elas mesmas terem passado pelo processo: “Da primeira vez eu achei horrível, mas hoje eu realmente gosto”, dizem, antes de dar mais um gole em seus copos de 500 ml.

Eu, que sou de humanas, ignorei completamente o cálculo de doses necessárias para amar o Fernet e fui lá desenvolver uma teoria sociológica. Não é que a gente passe a gostar de verdade da bebida. Como acontece com tudo nessa vida, nos acostumamos com ela e nos apegamos à sua importância simbólica nas noites portenhas: o momento de compartilhar seu copo com os amigos, as noites, risadas e as trocas que ganham vida ao redor da garrafa de Fernet. Um processo parecido ao que muita gente passa ao aprender a beber cerveja.

No fim das contas, festa após festa, lá estava eu segurando meu copinho de plástico para ser servida. Com o tempo, o sabor realmente deixou de me incomodar. Aprender a apreciar o amargor – seja no gosto do Fernet ou no sofrimento do tango – parece fazer parte do processo de se integrar àquela cultura. Brasileira que sou, cheia de samba e carnaval no corpo, sigo preferindo a doçura da vida. Com gelo, limão e açúcar.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones, no Youtube e em inglês no Yes, Summer!. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

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10 comentários sobre o texto “O amargo processo de se apaixonar pelo Fernet

  1. Eu não conhecia mas pedido do meu sogro comprei uma garrafa de Fernet Branca Italiana. Ele me informou que a produzida na Argentina tem a mesma qualidade, com o preço menor.
    Gostei da sua explicação.
    Um abraço.

  2. Oi Natalia, gostei muito do seu post. Eu sou Argentino, de Cordoba. Mais só fique chateado que vc nombra Buenos Aires mais se vc tiver que nombrar uma província como sinônimo de fernet, esa seria minha Cordoba querida. Além de lá mistura perfeita do amargo do fernet com nossa samba que seria o Cuarteto. Abraços!!!

    1. Ei Mariano! haha, desculpe-me por isso! Eu cito Buenos Aires porque foi a cidade na qual morei e passei mais tempo, por isso posso falar melhor de lá. Mas conheci Córdoba durante uma viagem curta. Adorei a atmosfera da cidade, muito alegre e jovial!

      Abraços e obrigada apor comentar! 🙂

  3. Natalia, pura verdade. Quando fui conhecer os amigos do meu marido (argentino) pela primeira vez e me deram fernet eu achei que estavam me envenenando hahahha. Acabei me acostumando com o tempo. Porém quando me casei na Argentina e meus amigos brasileiros foram para festa, eles quase morreram ao provar. Todos vinham me perguntar como eu deixei servirem isso na festa hahahaha. Amei o post.

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