Mais do que uma foto cheia de likes no Instagram ou uma atração turística imperdível riscada da lista, o que faz uma viagem foda, para mim, são as pequenas alegrias do dia a dia. Tive um momento assim em um sebo em Jimbocho, meu bairro preferido de Tóquio. Jimbocho é conhecido pelas livrarias, papelarias e lojas de livros, mapas e outros documentos antigos. São praticamente 200 sebos. Eu tinha entrado em um em busca de uma edição em inglês de I”s, um mangá do Masakazu Katsura publicado nos anos 1990, inédito no Brasil, que li pela internet, traduzido por fãs.
Não encontrei I”s no sebo. Mas achei um bonequinho do Doraemon por 100 ienes. Sabe o Doraemon? É um gatinho azul que foi tão famoso quanto o Pikachu no Japão, e que estrelou um desenho que passava na Manchete. Depois de me devolver o troco, o senhor que cuidava do caixa do sebo balbuciou várias palavras em japonês e me entregou um brinde pela compra: um marcador de livros. Não entendi nada que ele disse, exceto uma palavra: “Yamato!”. Eu reconheci o nome e o desenho no marcador e sorri para ele. Ele sorriu de volta. Naquele momento, senti uma conexão transcendental com o moço do sebo. E com o país inteiro.
Jimbocho: maior concentração de sebos (e alegrias no coração) por quarteirão.
O início da minha relação com o Japão tem tudo a ver com Doraemon. E com tantas outras coisas que passavam na Rede Manchete no início dos anos 1990. Tinha os clássicos de fantasia que todo mundo via: Jiraiya, Jaspion, Jiban, Black Kamen Rider, Changeman, Flashman. Tinha também uns um pouco mais obscuros, que eram ambientados numa Tóquio “de verdade”: Cybercops, Solbrain, Winspector. Como quase toda criança da minha idade, descobri a ordem dos signos graças a certos cavaleiros com armaduras de ouro. Até Sailor Moon e Patrine eu assistia (apesar de só confessar anos depois).
As séries que não dava para assistir eu acompanhava pela revista Herói (lembrou?). Coisas tipo Gundam Wing, Macross 7 e, claro, Yamato (que, no Brasil, era Patrulha Estelar). A Herói era a internet da época. E eu nem queria saber das páginas dedicadas aos heróis da Marvel ou da DC, só dos personagens de olhos gigantes e queixos pontudos. Gostava tanto que criei meu próprio mangá, uma cópia descarada de Sailor Moon que se chamava Sunny.
Mais um achado no sebo japonês.
Pois bem, os anos se passaram dentro e fora da Sala do Tempo do Templo de Kami-Sama e outras séries marcaram a minha vida. Eu não tinha TV a cabo durante a infância e adolescência e dependia da disponibilidade da TV aberta para assistir ao que queria (e da minha irmã, que gravava Pokémon na Record para eu assistir quando voltasse da escola). Sem grana para comprar um GameBoy, fui um dos milhões de brasileiros que enfrentaram a Elite Four pela primeira vez pelo emulador No$Gba (sdds MissingNo.)
Os OVAs sobre os quais eu lia, então, era impossível encontrar na minha cidade. Mas lá estava eu, sempre procurando saber mais sobre personagens, cenários e histórias. Algo me atraía demais naquele mundo cheio de tradições religiosas e cenários futuristas. Não sei se eram os uniformes, as reverências, os mechas, as regrinhas do idioma que eu tentei aprender aos 12 anos (sem sucesso). Talvez meu fascínio tenha a ver com uma coisa pela qual quase toda criança ou adolescente passa quando sente que falta algo em sua própria realidade: o Japão, lá do outro lado do mundo, era meu escape, meu mundo inalcançável, fantasioso até quando realista.
Não quero pagar de otaku hipster aqui. Provavelmente tem gente lendo esse texto que manja muito mais de cultura japonesa do que eu, não importa se é um gosto antigo ou recém-adquirido. Eu acho é ótimo que desenhos japoneses tenham se tornado mainstream e que todo mundo sabia o que é Naruto, lamen e Murakami.
Eu e meu amigão Charizard (não contem para o Venusaur, tá?)
Mas acho que deu pra notar que minha viagem não foi uma escolha aleatória. “Por que Japão?”, ouvi mais de uma vez. Todos os que perguntaram isso, porém, são pessoas que me conheceram recentemente. Meu amor pelo Japão nunca surpreendeu os que me viram crescer nas plateias do Torneio das Trevas, em busca das cartas Clow ou atrás do Suicune nos porões de Ecruteak City.
Quando fui para o Japão, li muito sobre os arranha-céus, os milhares de templos, os castelos. Mas, para mim, a graça era simplesmente estar no Japão. Ver as crianças de uniforme, as senhorinhas de bicicleta no parque, os adolescentes vidrados em videogames portáteis no metrô. Até eu me surpreendi com o jeito como, apesar de não falar uma vírgula em japonês, me senti imediatamente à vontade.
A caminho de um mirante em Shinjuku, reconheci as ruas que serviam de portal entre o nosso mundo e o Mundo Digital. Ao entrar numa loja de departamento, era como se estivesse escolhendo os melhores itens para comprar no shopping de Celadon. Um guydon no parque me lembrou a velocidade com a qual Goku comia o arroz com hashi. Até os tons de verde das montanhas dos Alpes Japoneses me lembraram os cenários incríveis do Studio Ghibli ou do Makoto Shinkai.
As montanhas no entorno de Shirakawa-Go: cenário inventado.
O moço do sebo me deu o marcador do Yamato no quarto dia da minha viagem. Nos dias seguintes, fiz e desfiz a mala tantas vezes e dormi em tantas camas diferentes que não sei mais onde ele foi parar. Mas, não importa. Daquele momento eu não vou esquecer. Nem do coral infantil cantando no Parque Memorial da Paz de Hiroshima, ou das amizades inesperadas feitas num hostel em Kyoto, ou das moças de yukata que pararam na ponte de um parque em Kanazawa bem na hora em que eu ia tirar a foto que abre este post. Nem mesmo da estrada escura na qual me perdi à noite em Shirakawa-go. Tudo isso aí aconteceu por acaso.
Depois de uma infância com pouco dinheiro e muita imaginação, uma juventude repleta de referências vindas do outro lado do mundo, me vi em 2017 num (outro) sebo, no mesmo bairro de Jimbocho, comendo um kare em meio a centenas de livros antigos, ao som de Celso Adolfo, um artista mineiro que é meio desconhecido até em Minas Gerais. Taí outro pequeno grande momento de alegria que não estava nas minhas planilhas e nem no guia da Lonely Planet que me acompanhou. Mais uma prova de que todo o dinheiro e tempo investidos nessa viagem não tinham sido em vão. De alguma forma, eu estava na minha segunda casa.
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Que texto lindo , vc colocou tanta alma e paixao neste relato, que me apaixonei por vc..E se vc escrever um livro..Quero comprar..
Êita, adorei o porquê do Japão.
Estou preparando a viagem da minha familia (eu, marido, 1 filha adolescente, outra criança) para o ano que vem.
Teus relatos são deliciosos e só dão mais vontade de estar lá. Sou mais velha, não faz parte da minha formação estes desenhos/mangás/cultura pop japonesa. Mas também sinto que devo ir pra lá faz tempo.
Enfim, obrigada por dividir!
Abraço,
Malu
Maravilhoso! Tenho uma filha de 6 anos que é apaixonada pelo Japão e tudo relacionado com sua cultura (não sei de onde veio tudo isso!). Mais aprendi a amar ao vê-la crescendo se interessando pela arquiteta, filosia e artes marciais, rs. Nunca me pediu viagens que geralmente fascinam as crianças. Ela me faz planejar uma viagem ao Japão…e quem sabe um dia não consigo realizar o sonho dela e talvez descobrir de onde vem esse encanto?
Conheço muito bem esses sentimentos, tive uma infância parecida com a sua e estive no Japão tb, foi uma experiência maravilhosa, parecida com a sua! Ótimo post.
Que ótimo! É mesmo um lugar incomparável, né? Espero que você também possa volta pra lá um dia 🙂
ótimo post! Me identifiquei demais!
Já conseguiu ir pra lá? Tomara que possa ir logo!
Maravilhoso, sem mais
<3