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Diário de bordo: como foi passar a quarentena dentro de um navio

Tínhamos planos, viagens, rotina e o trabalho. Tudo mudou. Mudou rápido. Tão rápido, que algumas pessoas nem em terra firme estavam. Esse é o caso da nossa entrevistada de hoje, que trabalha para uma grande empresa de cruzeiros e que vai nos contar um pouco como foi passar pela quarentena dentro de um navio, em mar aberto. Por questões de segurança, não vamos usar o nome verdadeiro dela: vamos chamá-la de Elisa.

“2020, né? Este ano não tá fácil pra ninguém. Quem imaginaria que iríamos passar por uma pandemia dessas dimensões nos tempos em que vivemos? Em pleno século 21, com medicina avançada, tecnologia de ponta, conexão global instantânea… e nós aqui, frágeis como sempre, rendidos à natureza”.

navio mar pessoas quarentena

“Para mim este ano já começou com grandes mudanças. Deixei casa, emprego e muitos pertences pra trás para viver uma nova aventura: trabalhar num navio. Há um ano eu percebi que precisava sair da minha rotina e tentar algo novo, então essa possibilidade se apresentou e por que não? Seria uma experiência incrível”. Elisa só não sabia como.

Ela explica que os empregos em navios são, via de regra, por contratos de curta duração, variando de acordo com a empresa e a função exercida. Em geral, são de 4 ou 6 meses, podendo ter contratos de até 9 meses (sim, 9 meses a bordo sem voltar pra casa).

Ao fim desse tempo, há um período de cerca de dois meses de férias e então começa o próximo contrato. “Não é um emprego fixo, mas costuma ser estável, a menos que uma das partes não queira mais continuar. O meu era um contrato de seis meses na área de atendimento ao cliente, que começou em meados de janeiro de 2020. Em julho, eu voltaria pra casa e embarcaria novamente em setembro, tudo estava dentro dos planos, até o covid-19 acontecer”, conta.

cruzeiro no mar agua azul plantas

A notícia fatídica – a quarentena no navio

“Começamos a ouvir falar do vírus no final de janeiro, tudo ainda muito distante, porque nosso itinerário era no Caribe, então não parecia algo que iria nos afetar diretamente, não tínhamos a preocupação já presente nos navios que estavam na Ásia. Nossa rotina de trabalho seguia normalmente, embarcando e desembarcando passageiros, sem restrições”.

Elisa conta que navios são, por si mesmos, paraísos de doenças contagiosas. “Desde que embarquei me falaram que é normal ter ondas de virose nos departamentos, porque vivemos num espaço confinado e relativamente pequeno. A maioria dos tripulantes divide cabines e banheiros e trabalha em áreas internas, sem janelas. Para evitar o contágio, as regras de higiene são rigorosas e desde o primeiro dia recebemos instruções de lavar sempre as mãos, manter as áreas comuns higienizadas e reportar qualquer sintoma, principalmente diarreia e vômito”. Mas nenhum treinamento, nenhum folheto poderia antecipar o que estava por vir.

No início de fevereiro veio a notícia de um navio com vários casos de covid-19 perto do Japão – e isso fez com que a Elisa e o restante da tripulação começassem a prestar um pouco mais de atenção ao que acontecia do outro lado do mundo.

Ela conta que, no fim de fevereiro, as notícias sobre o covid-19 já eram alarmantes. Foi então que começaram a operar em um nível mais alto de sanitização e os passageiros já pareciam mais preocupados. Mas mesmo assim os cruzeiros e passeios continuaram.

planeta terra mascara covid

Em março, as coisas se complicaram e as restrições se tornaram ainda maiores. “No navio existem vários restaurantes para as refeições principais dos passageiros, um deles é um buffet onde os próprios passageiros se servem da comida. Aumentando o nível de sanitização, as pessoas só podiam entrar no buffet depois de desinfetar as mãos com álcool gel e não era mais permitido se servir dos pratos, somente os tripulantes tocavam nos talheres para servir a comida”. Todas as áreas públicas de muito contato, como corrimões, maçanetas, portas, bancadas e mesas do navio passaram a ser desinfetadas com mais frequência.

“Os passageiros estavam bem mais preocupados também, os que estavam em cabines internas (sem janela) pediam para trocar para cabines com varanda, por medo de ficarem presos em quarentena no navio. Alguns desembarcavam no meio do cruzeiro em algum dos portos no Caribe, para pegar um voo de volta pra casa o mais rápido possível, já que os aeroportos começaram a fechar”.

Elisa relata que durante o tempo em que estavam embarcados, recebiam muitas notícias sobre o contágio. Os passageiros também reportavam sempre que havia alguém tossindo ou espirrando, perguntavam que medidas de prevenção estavam sendo tomadas, se tinha algum caso a bordo.

“Uma onda de pânico começou a se instaurar, mas as pessoas se tranquilizavam um pouco quando mostrávamos as medidas de sanitização e quando garantíamos que não havia nenhum caso a bordo. Isso era repetido quase o dia inteiro, todos os dias, desde o início de março”.

E então a OMS decretou a pandemia, no dia 11 daquele mês. Com isso, todos os cruzeiros tiveram de parar de operar. “Em meados de março, desembarcaram os últimos passageiros e a partir daí tudo mudou”, conta a tripulante.

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Quarentena de luxo a bordo do navio

“Nunca na história dos cruzeiros havia acontecido algo parecido. Desde março, mais de meio milhão de tripulantes ao redor do mundo ficaram embarcados em seus locais de trabalho, sem passageiros. Alguns navios ainda tiveram passageiros até abril, por dificuldades em repatriá-los. Mas nos casos, como o meu, em que conseguimos desembarcar logo todos em segurança (e sem casos de covid-19), a vida mudou drasticamente”.

Elisa conta que logo nos primeiros dias todos foram transferidos para as cabines dos passageiros, com varanda. Claro que essa medida não foi apenas para dar conforto, mas para prepará-los para o isolamento, já que não seria apropriado estar isolado com mais uma ou duas pessoas numa cabine minúscula e dividindo banheiro. “Sabemos que não foi por amor que ganhamos os quartos de luxo, mas mesmo assim aceitamos e aproveitamos”.

Além disso, como não havia casos confirmados no navio em que estava trabalhando, no dia seguinte ao desembarque dos passageiros eles passaram a fazer uso de todas as áreas que antes eram reservadas aos hóspedes. “Piscinas, cafeteria, academia, teatro, bares… tudo para nós.
Eu, pela minha posição a bordo, já tinha acesso a algumas áreas dos passageiros, como teatro, restaurantes, bares. Mas a maioria dos tripulantes não pode circular por essas áreas. Foi emocionante demais ver pessoas que trabalham há 10 ou 20 anos à bordo passearem pelo navio em vídeo chamadas mostrando aquilo tudo, sentados na beira da piscina relaxando, aproveitando para comer algo diferente do menu cotidiano do refeitório. Essas pessoas merecem desfrutar de tudo isso e nunca tinham pensado em um dia poder fazê-lo”.

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No navio de Elisa, nem todo mundo parou de trabalhar, mas os horários foram drasticamente reduzidos ou adaptados. Alguns funcionários pararam definitivamente, como dançarinos, músicos e o pessoal do casino, ou foram convocados para outras tarefas, como as rotinas de desinfecção e sanitização das áreas comuns.

Apenas as áreas técnicas continuaram trabalhando normalmente, porque o serviço deles não é afetado pelos passageiros, já que o navio continuava operacional.

“Mas essas regalias duraram pouco. Lembra que o navio é um criadouro de doenças contagiosas? Com o tempo foram surgindo mais casos de gripe e muitos relatos de sintomas parecidos com os da COVID-19 (febre, dores etc). Por precaução, as restrições aumentaram, as atividades foram cessando, até que ficamos em autoisolamento nas nossas cabines, saindo apenas quando necessário”. Eles passaram a fazer uso obrigatório de máscara fora da cabine.

Foi então que os efeitos da quarentena no navio se tornaram mais claros. “Tivemos que adaptar nossas atividades para o tempo livre. Eu fui do time de fazer yoga, pegar sol e dormir. Tínhamos internet à vontade, então era fácil estar conectado com o ‘mundo real’ e com nossos amigos”.

covid planeta terra

Como eles não podiam atracar em nenhum porto e ninguém podia desembarcar, ficaram semanas ancorados na região das Bahamas, junto com vários navios na mesma situação.

Pouquíssimas vezes foram autorizados a atracar num porto. E quando autorizados, era somente para o abastecimento de comida, medicamentos e outros materiais necessários.

“Ficamos semanas ancorados em alto mar, sempre com bom tempo e sem ver um palmo de terra. Víamos os outros navios à distancia e nos comunicávamos com eles por buzina ou luzes, era divertido, dava uma sensação de ‘estamos juntos nessa’”.

Segundo a tripulante, a rotina se reduziu a combinar os horários das refeições com amigos para poder vê-los um pouco, conversar pela varanda com os vizinhos de cabine e trabalhar.

“Não era o pior dos mundos, ainda tínhamos bastante contato com outras pessoas, diferente do confinamento em terra, mas também não era ideal, pelo excesso de ócio e a percepção de estar no meio do nada, a quilômetros de terra firme”.

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Para a Elisa, esse período também foi de muitas dúvidas e poucas respostas, já que era uma situação completamente nova para a empresa.

Ela diz que sentiu solidão, desânimo e ansiedade com a possibilidade de passar muitos meses sem trabalho. “Estávamos todos inseguros e com medo do futuro, sem saber como viver sem salário por não sei quanto tempo. Será que procuro outro emprego? Será que espero me chamarem pro próximo contrato? Quando vai ser isso?”

Salários, contratos, garantias, benefícios, compensações, repatriamento. Segundo ela, tudo isso foi parcialmente discutido: “As informações mudavam conforme mudavam as condições no mundo. Todos pareciam meio perdidos, e estavam mesmo. Não por irresponsabilidade, mas porque as determinações e restrições dos governos mudavam todos os dias. Não era fácil manter um plano. Quando ficou claro que isso não se resolveria em 2 ou 3 meses, a preocupação passou a ser mandar os tripulantes para casa o mais rápido possível, da forma mais segura possível”.

E foi um processo longo. Após 54 dias de quarentena em um navio em alto mar, ela conseguiu chegar em terra firme e em casa. Apesar de se dizer pronta para o próximo embarque, Elisa tem noção de que não é possível saber quando isso vai acontecer. Sem salário, ela só espera que não demore muito.

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3 comentários sobre o texto “Diário de bordo: como foi passar a quarentena dentro de um navio

  1. Que 2020 maluco. Vou dar o meu testemunho. Eu e meu marido chegamos a ficar parados no porto de Lisboa com o navio MSC Fantasia por 02 dias. Estávamos numa travessia, (a nossa 5ª) e mesmo com a incerteza do que estava acontecendo, a CIA resolveu partir do porto de Santos rumo a CIvitavecchia,, e assim fomos. Confesso que foi uma delícia, ainda no Brasil a gente desceu e passeou pela cidade, Búzios, mas, assim que atravessou, não podíamos mais visitar nenhum país do itinerário, e encerrando a viagem em Lisboa. Ficamos embarcados por 15 dias, com todo conforto e luxo que um navio oferece, tinha momento em que esquecíamos do que estava acontecendo, Muitos brasileiros que estavam a bordos optaram em interromper o cruzeiro e descer em Maceió (uma opção dada pela CIA), como também, quem quisesse continuar, podia. A ficha começou a cair de verdade, quando em um jantar o comandante nos avisou pelo alto falante do navio, que a partir daquela noite teríamos que fazer isolamento em nossas cabines, pois, haviam 27 portugueses no navio, e eles puderam desembarcar, e um deles, tinha dado positivo para covid-19. Houve uma união muito bonita de todos nós brasileiros que estávamos a bordo, nos encontrávamos no teatro para decidirmos o que fazer, foram várias reuniões, inclusive com o comandante do navio, fizemos um grupo no whatsapp e tudo era marcado por esse canal. Tínhamos medo de sair do navio e ficarmos no aeroporto sem poder embarcar de volta para o Brasil. Até que elegemos 5 pessoas para nos representar diante as discussões de nossos destinos e assim, conseguimos, com a MSC, as autoridades portuguesas e o nosso governo brasileiro, sermos repatriados em um voo fretado somente para nós brasileiros. Um esquema foi montado em Portugal para que não tivéssemos contato com ninguém, vários ônibus foram nos buscar no porto e fomos escoltados até a Pista do avião, isso mesmo, não entramos no aeroporto, não fizemos checkin e nada. A polícia federal portuguesa tinha uma lista com os nossos nomes, e na escada do avião, eles iam conferindo com nossos passaportes se estávamos na lista. E assim, voltamos, com 10 hrs de voo, com muitas tosses e espirros kkkk. Não sendo pela gravidade do momento em que vivemos, posso dizer que isso que vivenciámos foi uma aventura inesquecível, fizemos boas amizades (já que não desfizemos o grupo do celular) e aproveitamos muito até onde nos foi permitido. Me desculpe se escrevi demais, mas, fiquei empolgada com a excelente matéria.

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