A lenda da serpente encantada de São Luís

Nunca dê as costas para a Fonte do Ribeirão. E não apenas porque essa construção tem quatro séculos de história e é uma das principais atrações de São Luís. O problema é outro: é que lá vive uma serpente gigantesca, um ser que nasceu há séculos e passou toda sua existência dormindo. Dormindo e crescendo no Maranhão.

Há quem diga que a serpente, que pode ser vista por qualquer um que ouse entrar nas galerias subterrâneas da cidade, hoje ocupa quase toda a área abaixo do centro histórico de São Luís, que é enorme.

Segundo a boca miúda, a barriga do bicho está na altura da Igreja do Carmo, a cauda já alcançou a Igreja de São Pantaleão, enquanto a boca graúda da serpente está na Fonte do Ribeirão. O bicho é tão grande que, garantem os ludovicenses, em breve sua cauda alcançará sua boca.

Veja também: O que fazer em São Luís, no Maranhão

Onde ficar em São Luís, no Maranhão

Fonte de Ribeirão (Foto: Marcus Soares)

Quando isso ocorrer, a serpente resolverá que a soneca de quatro séculos já deu o que tinha que dar, levantará os braços, numa boa espreguiçada, notará que está com fome e em seguida pensará: “Uhnn, comida”.

Mas a comida é, você adivinhou, o próprio rabo dela, causando uma série de fatos inesperados: uma tremenda dor na própria cauda, o movimento brusco e violento do maior ser vivo do planeta e a destruição completa da cidade, que será engolida por um gigantesco maremoto. Tudo isso e a repentina certeza de que lendas urbanas são, afinal de contas, verdadeiras.

O Padre Antônio Vieira, que esteve no ponto turístico do Maranhão em 1654, mencionou a serpente, que já era temida pelo povo. Quando o governador do estado, Fernando António Soares de Noronha, resolveu construir a Fonte do Ribeirão, em 1796, a ideia era apenas levar água potável para a cidade e melhorar o saneamento de São Luís. Só que a fonte e suas galerias acabaram virando a casa da serpente. Na cabeça das pessoas ou no subterrâneo da cidade. No fundo tanto faz.

O tempo passou, as pessoas conversaram e a lenda urbana encontrou formas de crescer. Séculos mais tarde, Zeca Baleiro falou da serpente em uma de suas músicas.

Céu azul rio anil
dorme a serpente
levanta miss serpente
põe tua lente de contato
mira dos mirantes
os piratas não param de chegar
vem vem ver como é que é
vem sacudir a ilha grande
vem dançar vem dançar
alhadef te espera na casa de nagô

eu quero ver
eu quero ver a serpente acordar
eu quero ver
eu quero ver a serpente acordar
pra nunca mais a cidade dormir
pra nunca mais a cidade dormir

Há quem diga que Padre Antônio Vieira estava certo em seus Sermões, quando disse que no “Maranhão até o sol e os céus mentem”. Eu discordo. A questão está mais para aquilo que garantiu o escritor Roberto Drummond, ao analisar outras lendas brasileiras: “Eu acho que a realidade, no Brasil, é uma ficção. Em qualquer país também é, mas no Brasil a gente conhece. O Brasil é uma ficção. (Foi) escrito por Deus, Diabo, Shakespeare, Tolstoi e por aí.”

Numa matéria da Folha de São Paulo sobre o assunto, publicada em 2004, a então diretora do Centro de Criatividade Odylo Costa Filho tentou explicar a origem do mito: “O isolamento da ilha, com um grande contingente de negros, gerou esse misticismo, que também era reforçado pelos portugueses”.

Ficção ou realidade, ao passar pelo Centro Histórico de São Luís, não tire os olhos da Fonte do Ribeirão nem por um minuto. Muita gente não acredita na serpente encantada de São Luís, mas que ela existe, existe. E o mais indicado é não estar na reta dela quando o despertador tocar. Ninguém fica feliz quando ouve o toque do despertador – ainda mais depois de uma noite que durou quatro séculos.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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