Quase sempre é difícil explicar os motivos de uma guerra, mas no caso da Guerra da Bósnia e Herzegovina, essa dificuldade poderia ser multiplicada por mil. Como um povo com ancestralidade comum e idioma praticamente igual pode chegar a uma guerra que deixou mais de 140 mil mortos, cerca de quatro milhões de refugiados e horrores que até hoje são julgados em tribunais internacionais, com acusações de genocídio, limpeza étnica e estupros em massa?
“Eu fiquei três anos sem ter notícias da minha família”. Enquanto dirigia, Lena nos contava sua história. Ela era filha da dona de um hostel em Mostar e nos levava para um passeio. Lena tinha 17 anos e jogava handball quando a guerra começou. Por isso, conseguiu asilo na Itália durante o conflito.
“Nós somos muçulmanos, mas aposto que vocês não saberiam isso só de olhar para mim ou para minha mãe”. De fato, contrariavam todos os estereótipos. “Eu nunca me defini ou pensei em mim mesma como muçulmana, ou que isso importasse além da minha fé pessoal. Quando cheguei na Itália e me perguntaram minha religião, eu respondi, não sei, sou da Iugoslávia”.
Diversidade cultural e religiosa nas ruas de Sarajevo
A diferença crucial entre croatas, sérvios e bosníacos é a religião. Os primeiros se declaram católicos, os segundos ortodoxos e os últimos muçulmanos. Porém, durante os 45 anos que viveram sob o regime comunista comandado pelo general Josip Tito, houve uma tentativa de “irmandade e união” entre esses países.
É que desde o fim da Segunda Guerra Mundial até 1980, a República Socialista Federativa da Iugoslávia tentou estabelecer uma lógica anti-nacionalista, anti-religiosa e de união das nações eslavas, no caso, Sérvia, Croácia, Montenegro, Eslovênia, Bósnia e Herzegovina e Macedônia. Somente a partir do censo de 1971, por exemplo, ‘muçulmano’ passou a ser uma categoria de identificação.
As razões para esses povos entrarem em conflito, porém, vão muito além da fé de cada um. Tem a ver com as invasões anteriores, do império Áustro-Húngaro e do Império Turco-Otomano, assim como a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais. Sentimentos de vingança e nacionalismo exacerbado são as melhores explicações sobre o porquê essa guerra aconteceu.
As forças políticas nacionais que surgiram na fragmentada Iugoslávia pós-Tito focaram no nacionalismo. Prometiam uma “grande Sérvia” ou uma “grande Croácia”. Davam privilégios às maiorias étnicas dos respectivos países e as minorias tornavam-se cidadãos de segunda classe.
O fim da Iugoslávia e o início da guerra
Desde 1987, na Sérvia, Slobodan Milosevic vinha ganhando poder, estimulando discursos que vitimizavam o povo sérvio contra seus vizinhos, geravam medo na população e estimulavam a ideia de que as comunidades sérvias nos demais países deveriam se unir num único país contra os inimigos croatas e muçulmanos.
Em dois anos, ele foi eleito presidente sérvio. Ao mesmo tempo, a Croácia era liderada por Franjo Tudjman, que chegou ao poder com uma plataforma anti-sérvios.
Suvernirs comuns nessa região dos Bálcãs
O primeiro país a pedir a independência da Iugoslávia foi a Eslovênia, em junho de 1991, o que levou a uma guerra de 10 dias. Já a saída da Croácia iniciou um conflito maior.
Sérvios-croatas boicotaram o referendo que decidiu pela independência do país e, com o suporte do exército da Iugoslávia, que era comandado pela Sérvia, entraram em conflito com a polícia croata. Isso escalou para uma guerra que durou até 1995, com ambos os lados cometendo atrocidades, tirando pessoas que moravam há dezenas de anos de suas casas, colocando famílias e parentes em lados opostos, como é possível ver pelo relato abaixo:
“Meus tios do lado da família da minha mãe viviam em Dalmatia, numa cidade cuja população era predominantemente sérvio-croata. Antes da guerra, isso não significava nada, porque minha avô também era sérvia e os meus tios se casaram com mulheres sérvias”, relata o croata Kresimir, que era adolescente no período da guerra.
“Mas esses eram tempos de psicose coletiva e meus tios passaram a ser oficialmente ameaçados pelos irmãos de suas esposas. Sim, na sala de jantar, na frente das crianças e mães, disseram que meus tios seriam mortos em breve”.
A Guerra na Bósnia e Herzegovina
A Bósnia e Herzegovina tinha uma posição para lá de complicada: um país entre as duas potências, sem um grupo maioritário em sua população. Entretanto, ao invés de se declararem simplesmente “bósnios”, nas eleições em 1990, 80% da população decidiu dividir os partidos nacionais entre bosníacos (os muçulmanos bósnios), sérvios e croatas.
Quando a Bósnia fez um referendo por sua independência, os servio-bósnios também boicotaram a votação. Quando o governo Bósnio declarou sua independência, que foi reconhecida pelos Estados Unidos e comunidade Europeia em abril de 1992, o país já estava em conflito. E Sarajevo, a capital, cercada pelo Exército Popular Iugoslavo, comandado pela Sérvia.
Haris, do Sarajevo Funky Tours, nos contando sobre o cerco
Vista do cemitério judeu, de onde os snipers atiravam na população de Sarajevo
Sarajevo ficou cercada por mais de três anos e meio. “Eu vivi até os cinco anos numa cidade sitiada. Duas vezes, uma granada caiu a poucos metros de mim”, contou Haris, guia do tour sobre a guerra na capital da Bósnia. Hoje, no chão da cidade, as marcas de de bombas, pintadas de vermelho, são conhecidas como “Rosas de Sarajevo”.
“Vivíamos sem energia elétrica, com racionamento de água. Havia o risco de ser atingido por uma bala de sniper ou uma bomba. A comida que a ONU distribuía era enlatada, horrível, muitas vezes fora da validade. Até hoje as latas ‘ICAR’ são uma piada por aqui, nem um cachorro faminto conseguia comer aquilo”, relata.
Parte da comida enviada, ele contou, vinha da Guerra do Vietnã, de 20 anos antes. Há um monumento em Sarajevo chamado “ICAR Canned Beef Monument”, agradecendo ironicamente à comunidade internacional que enviava comida estragada ao invés de armas.
Como a ajuda das Nações Unidas falhou miseravelmente e o simples ato de andar na rua era um risco, o único jeito de sair ou entrar em Sarajevo era por um túnel construído em 1993.
O túnel da esperança tinha como fachada a casa de uma família e, apesar de no início ser destinado apenas às forças militares, acabou sendo caminho também para que civis pudessem fugir ou trazer mantimentos para aqueles que estavam dentro da cidade.
Esse infográfico da BBC é uma boa forma de entender melhor o cerco.
Um detalhe importante sobre guerra na Bósnia: em março de 1991, os governos da Servia e da Croácia se reuniram secretamente e combinaram a divisão da Bósnia Herzegovina entre eles, no caso da dissolução da Iugoslávia, o que era iminente. Em 1992, num outro encontro, confirmaram o plano.
Finalmente, em 1993, a Croácia, ainda em guerra com Sérvia, também iniciou um conflito com os bosníacos em algumas regiões do país.
Na região da Herzegovina, onde fica Mostar, a família de Lena estava no meio do conflito com os bósnios-croatas. “Como éramos muçulmanos, eles foram obrigados a deixar a nossa casa porque estava do lado errado da cidade”.
Mostar foi dividida em duas, com o Boulevard Marechal Tito marcando a faixa de conflito. “Meu irmão, com nove anos, passou horas com uma arma apontada para sua cabeça, enquanto decidiam se ele seria morto ou não. Felizmente, sobreviveu. Meu pai ficou um ano num campo de concentração”, relatou Lena.
Quando passamos pelo cemitério, construído de forma improvisada no local onde era o jardim da cidade, ela apontou e disse “Meu tio está enterrado aqui”. Muitos dos túmulos são de 1993.
Memorial das crianças mortas em Sarajevo
Boulevard em Mostar
As campanhas de limpeza étnica, no interior do país, buscavam eliminar nacionalidades – majoritariamente os muçulmanos – de regiões inteiras. Estupros coletivos eram cometidos sistematicamente contra mulheres e meninas, a fim de causar terror e também com o objetivo de engravidar e gerar bebês do grupo étnico majoritário.
Entre os horrores da guerra, aquele que foi considerado genocídio foi o assassinato de oito mil homens e meninos em Srebrenica, por forças sérvio-bósnias. A vila fazia parte da área de segurança da ONU, o que não impediu que os exércitos sérvios capturassem e matassem tantas pessoas. Mais uma prova da inaptidão das forças das Nações Unidas em intermediar o conflito.
O fim da guerra da Bósnia
Em 1994, um acordo de paz entre as forças croatas e bosníacas foi definido pelos Estados Unidos. Depois disso, os dois lados se uniram numa ofensiva contra a Sérvia, que começou a retomar territórios.
Em 1995, um ataque de bomba a um mercado em Sarajevo, que matou 37 civis e deixou 90 feridos, gerou pressão internacional suficiente para que a OTAN bombardeasse as forças dos sérvios-bósnios durante três semanas. Com isso, a Sérvia abriu espaço para conversas de paz e, em dezembro de 1995, o Acordo de Dayton foi assinado, terminado o conflito na Bósnia e Herzegovina.
“Eu não voto em ninguém, acho que esse governo é uma piada”, conta Lena, se referindo aos três presidentes do país.
Parte do acordo, no fim da guerra, foi eleger um presidente de cada grupo étnico, que tem um mandato de quatro anos, mas se revesam a cada oito meses. Isso, na prática, impede a continuidade de políticas públicas importantes e um crescimento econômico concreto.
Outra divisão foi a definição de áreas dentro do território da Bósnia que são controladas pela Sérvia, na chamada Republika Srpska. Inclusive, dentro de Sarajevo, como Haris fez questão de apontar as bandeiras e os oficiais da polícia.
“Minha maior mágoa é chamarem o que ocorreu de guerra civil. Faz parecer que éramos nós lutando apenas contra nós mesmos. Ignora o fato de que Belgrado tinha o poder e estava por trás disso tudo”, afirma Haris.
Na Sérvia, a guerra da Bósnia não é um assunto exatamente popular. Dois dos generais responsáveis pelos massacres na Bósnia, Ratko Mladić e Radovan Karadžić, ambos de nacionalidade bósnio-servia, passaram anos escondidos em Belgrado, com a ajuda da igreja e de líderes locais, antes de serem descobertos e levados a julgamento no tribunal penal internacional, em Haia.
Em 2016, na cidade de Srebrenica, foi eleito um prefeito de origem sérvia que nega ter havido um genocídio na vila. Há ainda, entre os sérvios, a visão de que seu país é visto como único vilão na história da guerra e que os sérvios que foram vitimados na guerra na Iugoslávia hoje são refugiados e não têm o mesmo nível de proteção e direitos constitucionais.
Vale lembrar, porém, que alguns dos lideres croatas e bósnios foram sim julgados e condenados pelo tribunal em Haia. Mas, de fato, isso é muito menos divulgado pela mídia.
As marcas da guerra na Bósnia
Nos anos após a guerra, crescer numa cidade que viveu em cerco significava transformar em brinquedos as armas do passado. Um passatempo perigoso.
“Juntávamos crianças para pular em cima das minas para tanques que guerra. Quando o número de crianças morrendo por conta das minas e granadas escondidas começou a crescer, lembro-me das palestras que soldados da ONU faziam nas escolas para nos ajudar a reconhecer e evitar brincar em determinados lugares”, lembra Haris.
Lena comenta que, após seu retorno da Itália, passou a perceber uma pressão muito maior para que as pessoas expressassem sua religião. “Eu me assustei, quando voltei, com a quantidade de mulheres usando véu. Perguntei para minha mãe o porquê daquilo e ela disse que andavam pagando as meninas para que o grupo parecesse mais unido”.
A quantidade de bósnios-sérvios diminuiu bastante em algumas localidades, concentrando-se principalmente nas áreas da Republika Srpska.
Qualquer caminhada pelas cidades da Bósnia e Herzegovina vai mostrar marcas de balas, prédios destruídos e monumentos recentemente reconstruídos, mas cuja destruição ainda faz parte do imaginário coletivo, afinal, essa guerra aconteceu há apenas 22 anos.
A quantidade de cemitérios, às vezes em lugares inesperados, relembra que 100 mil homens, mulheres e crianças morreram nesse país. Museus e exposições de fotos tratam da história, mas é conversando com as pessoas que viveram o conflito que conseguimos entender melhor a dimensão de como a guerra os afetou tão profundamente.
Conheça os lugares citados no post:
- Viagem para a antiga Iugoslávia: roteiro pela Bósnia e Herzegovina
- O que fazer em Sarajevo, Bósnia: guia de viagem completo
- O que fazer em Mostar, Bósnia e Herzegovina: guia de viagem
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Muito esclarecedor o post. Todo mes de novembro, aqui na Croacia, a cidade de Vukovar (a ultima a se devolvida e a que mais tempo resistiu em dominio servio) ‘e lembrada. Milhares de pessoas peregrinam ate la e fazem homenagens lembrando as vitimas da guerra. O pais ainda respira esses ares tristes, mesmo independente apos anos. As gerações que vem agora (incluindo o meu filho de 1 ano e meio) se ve responsável por mudar esse cenário e fazer o pais avançar. Esperamos que de forma a mudar o pensamento e a atitude de muitos que ainda possuem resquícios dessa época tao sofrida.
Oi Debora,
Sim, torço para que novas gerações como a do seu filho consigam deixar esse passado triste para trás e construir o futuro bonito que esses países merecem
Muito bem exposto o conflito nesta região. Parabéns pelo artigo.
obrigada!
Parabéns por elaborar um texto que estimula o turismo com o conhecimento histórico desta bela e sofrida região.
Obrigada pelo carinho
Parabéns Luiza! Muito importante relembrar essa guerra que aconteceu faz tão pouco tempo, muitas das pessoas que passaram por isso tem a nossa idade. Você explicou de um jeito muito claro as principais razões que levaram ao conflito. E, apesar do que passou, as pessoas nos Bálcãs são muito amáveis, recebem muito bem os turistas, vale a pena visitar!
obrigada!
Quanta riqueza de conteúdo neste post Luiza! Te parabenizo por nos levar a conhecer as tristes histórias que mais uma guerra insana promoveu!
Abraço
obrigada pelo carinho Marcolina
Amei!!
Muito bom esse post, estou adorando visitar e ler os posts deste blog, sempre tem posts legais e com dicas interessantes, informações e muitas coisas boas…
Parabéns !!!